segunda-feira

Telefonei ao Magalhães. Hoje não vou, não consigo mexer-me, não sei o que tenho, devo estar a chocar uma daquelas gripes de Verão que nos doem até aos ossos.
Dispensei a empregada, não quero ver ninguém, nem escutar um ruído que seja quanto mais estar a responder a questões do foro doméstico.
Também não fui correr, sinto o corpo pesado, as pernas pesam uma tonelada, acho que tenho frio. Deve ser febre, não sei, nem sequer tenho termómetro em casa, nunca fico doente e se pressinto qualquer coisa ignoro, não deixo que nada tome controle da minha vida e do meu corpo.
Na verdade não me dói nada. Parece que fui anestesiada.
Só precisava que a cabeça parasse um pouco, este vai-vem alucinado que me faz correr para o meu saco do lixo, abri-lo, remexer naquele sangue todo, talvez aproveitar o dia de hoje que não saio de casa e arrumá-lo de vez, emparceirar membros que tenho à solta sem os respectivos esqueletos.
Não me lembro se ontem me doeu, já fiz um esforço enorme para reconstituír toda a cena, mas parece que me faltam pedaços, não têm sequência lógica os que consigo recordar com nitidez. Já tentei agarrar-me a um ou outro bocado que me lembre bem mas depois não apanho o fio à meada. Acho que não me doeu, não me lembro. Hoje não me dói. É só uma sensação estranha na barriga, muito semelhante ao vazio depois de se vomitar, aquele buraco que parece colar a pele da barriga às costas, ou melhor às costelas, tudo colado, uma membrana fina e elástica, jogo de cintura, literalmente.
Creio que perdi a noção do tempo, sinto-me em casa há séculos, como se sempre estivesse estado prisioneira dela e do saco de lixo, de arrasto para qualquer divisão onde me desloque.
Hoje não vou e amanhã, se calhar, também não.

domingo

- Já sei que me vais dizer que não queres saber...
- Então se o sabes, não o digas.
- Não sei se consigo... Sinto que devo dizer-te.
- Pára lá com o suspense. Ou dizes ou te calas de uma vez.
- Digo. Mas acho que não vais gostar...
- Então não digas. E também não fales mais sobre o assunto.
- Sabes de quem vou falar?
- Quase adivinho... E dispenso. Isso está morto e enterrado.
- Pois olha que de morto não tem nada.
- Não estou interessada, adiante.
- Não tens nem um pedacinho de curiosidade em saber?
- Não.
- Ora! Se não te conhecesse, chamava-te mentirosa.
- Não te atrevas!
- Calma! Estou a provocar-te! A ver se me deixas contar...
- Eu deixo, não te tapo a boca. Mas és capaz de ficar sózinho.
- Eu conto de uma vez e juro que depois não falo mais dele!
(Calo-me. Estou à espera)
- Posso? Posso mesmo? Tu deixaste!
(Continuo calada. O meu amigo gay adora estes bocadinhos. Avanços e recuos)
- Era Ladies Night. Sabes como gosto de aparecer nestes dias! Os homens lindos parecem que nascem debaixo das pedras da calçada! Dizem-se hetero...
- Não divagues. Já sei do que gostas.
- Que chata! Nem me deixas dar ambiente à coisa!
- Pára com a bichisse e vai directo ao assunto. Começas a irritar-me...
- Pronto, pronto!
(Será que é agora que desembucha de uma vez?!)
- Estou eu no bar e entra ele...
- E depois? Que é que isso tem?
- De mão dada com uma criaturinha!
- Uma loira pintada, com tiques de tia? Já conheço, até fomos apresentadas.
- Não, não! Uma morena! Lindíssima! Se eu gostasse não me escapava!
- Não sei quem é.
- Pois é isso mesmo! Aquilo é carne fresca!
- Bom... e que é que isso tem de tão extraordinário? O lugar é público, ele livre.
- Não por muito tempo!
(Abre muito os olhos, aperta os lábios. Está doido para que eu lhe faça perguntas.)
- Não dizes nada?
- Que queres que diga? Eu não estava lá, a história é tua.
- Minha não! Deles! Do casal-maravilha! Parece que vão dar o nó!
- Ai sim?
- Ele não se deve lembrar de mim... Afinal cruzámo-nos, o quê? Duas, três vezes?! Quando foi ao bar ouvi perfeitamente um fulano que lá estava perguntar-lhe quando sería o casório. Ele até se riu! É para breve, disse ele, para breve. Estás a ouvir? Para breve!
(Acho que não percebi o que ele me disse... Porque é que ele está tão longe? Quase nem o ouço, vejo a boca dele a abrir e fechar como se tentasse dizer-me alguma coisa mas não ouço, não ouço, não ouço nada...)
-Edna? Tu estás a ouvir-me? Não me assustes! Ai, minha Nossa Senhora! Estás a sangrar tanto!

sábado

Não tenho fotografias em casa. Quero dizer, álbuns de fotografias, desses como toda a gente tem, com os instantâneos das festas de aniversário quando se é garoto, o grupo de amigos, os namorados, o pai, a mãe, toda a familia até à quinta geração. Esses álbuns existem mas estão em casa da minha mãe. Aqui só ocuparíam espaço, nunca lhes pegaría, não lhes encontro interesse algum.
Para quê perder tempo com tempo que já passou? Que não volta de nenhuma forma mesmo que se gostasse muito ou até se repetissem as mesmas coisas, os mesmo gestos?!
A minha mãe diría que é para recordar os bons momentos, os rostos daqueles que em certa altura estavam connosco num instante de felicidade.
Não consigo perceber esta teoria.
Eu lembro-me bem daqueles que passaram pela minha vida. Claro, os importantes que passaram pela minha vida. Lembro-me das suas feições, dos seus trejeitos, até me lembro do som das suas vozes e o cheiro deles. Lembro-me dos sinais nas costas da mão, da tatuagem a azul metileno que a prima maluca tinha no pescoço... Lembro-me de tanta coisa que um bocado de papel não consegue enquadrar... Que curioso, até me recordo do que foi dito no momento do disparo.
Mas acho que a minha memória é tão minuciosa porque raramente eu apareço nas fotografias. Nunca gostei de posar para elas e nem mesmo ser apanhada de surpresa. Incomodava-me. Quando era miúda pensava que ao carregarem no botão podíam fotografar-me por dentro. Ou por fora, e na revelação sería a surpresa quando me vissem vergada pelo peso do meu saco de lixo.
Ah! Pois é. Este saco vem desde sempre.
Ele sim, é um verdadeiro álbum de recordações.

sexta-feira

Reunião de equipas. Gosto destas reuniões, desta agitação que se faz até eu chegar e silenciarem-se como meninos de escola à entrada do professor. Com o decorrer voltam a falar mais alto, a entusiasmarem-me pelos temas e a defenderem o seu ponto de vista, motivo-os, dou-lhes a corda que precisam para se esticarem, recolho opiniões e defino perfis, descubro o bom profissional daquele que vem só para receber o seu ao fim do mês sem inovação, sem gosto de maior.
Já tive casos em que um ou outro saltou do sofrível para a genialidade. Basta dar-lhes espaço, liberdade, responsabilidade.
Mas também já aconteceu nada acontecer. Mantenho um par dessa estirpe, preciso deles: rotineiros, certos, sem imaginação mas cumpridores.
Gosto de aproveitar estas reuniões para lhes fazer ver que o meu sucesso depende do deles, e que a minha posição enquanto dona da empresa é tão frágil quanto a deles como meus empregados. Se eu falir eles ficam sem emprego e ninguém quer isso.
Sou exigente, quero ser a melhor.
Eles sabem disso, da minha forma de funcionar, de como no meio me chamam a cabra e quase o encaram como um elogio guerreiro.
Não me incomoda o rótulo.
Antes cabra do que não saberem quem sou.
(Hoje, mesmo antes de eu entrar na sala de reuniões, ríam-se de mim, do meu admirador secreto, dos ramos no caixote do lixo... achei graça, confesso, a imitação da minha voz e dos meus gestos quase me arrancou uma gargalhada)

quinta-feira

Hoje que eu esperava não houve ramo.
Se por um lado contrariou as minhas expectativas por outro leva-me a tirar conclusões: é alguém que me está perto, que me assiste, que soube da minha reacção. Talvez aguarde mais um reflexo da minha parte ou teve conhecimento sobre o meu desagrado.
Claro que especulo e claro que, por muito que as pessoas sejam previsiveis nos seus actos há sempre uma componente impossível de supôr, mas a maioria da gente é de tão fácil adivinhação que creio, não devo estar muito enganada quanto às equações que formulo.
Neste momento a jogada é do lado de lá, viu como ataquei.
No fundo, tudo isto é uma imitação da vida: uma guerra em que o elemento bélico se reproduz na voz através de acções de ataque e defesa, ganho de território, tácticas de penetração e manejo de armas - as inatas e as adquiridas pelo intelecto.
Caramba! Quase me desaponto!
Agora que eu estava equipada para fazer este jogo!
Descansemos, então. Estuda-se por agora o movimento seguinte.
Eu trabalho. Muito. O novo cliente é exigente e eu gosto assim. Quanto mais exigir mais eu crescerei e neste campo sim, eu conheço perfeitamente os dois lados da barricada e não estou disposta a depôr armas.
Sou uma vencedora.

quarta-feira

- Descreva-me o que sentiu.
- Não senti. Deixei de sentir.
- Refere-se ao peso do corpo...
- A tudo.
- Defina esse tudo.
- Tudo! Sei lá, tudo!
- Já me disse que deixou de sentir o corpo. Agora refere que foi mais do que isso.
- Muito para além disso.
- E foi o quê?
- Qualquer coisa que não se vê mas está cá dentro... o meu saco...
- Como? Não percebi!
- Nada, nada...
- Como assim? Fala-me de um saco... não percebo.
- O que eu quería dizer é que é uma coisa que pesando muito não se vê. Mas pesa. E eu deixei de lhe sentir o peso...
- Incomoda-a falar de alma?
- Que é isso da alma?!
- Não sei, diga-me a Edna...
- Chamar-lhe-ía mais tranquilidade...
- Consciência? Consciência tranquila? É isso que quer dizer?
- Não! Eu tenho sempre a consciência tranquila!
- Mesmo no caso dessa relação que entrou em rota de colisão...
- De forma alguma! Não houve caminhos que nos fizessem bater de frente!
- E no entanto a separação deu-se. Acha que essa tranquilidade de que me falou quando estava na banheira é a constatação de uma realidade?
- Não...
- Talvez, por fim, tenha realizado que jã não há relação, que o tempo que tem andado a viver, ou melhor, reviver, é o da separação, o da ruptura como lhe chamou aliás...
- Não perco tempo com constatações. Esse foi um facto, nada fará mudar o que aconteceu! E de maneira alguma revivo coisas! Não tenho tempo para isso!
- Mas naquele dia na banheira tudo voltou, não foi?
- Não!
- Não?
- Não.
- Quer acrescentar alguma coisa à nossa conversa? Algum pormenor de que não tenhamos falado...
- Troque de peúgas. É-me dificil concentrar quando você está de peúgas brancas.
- Desculpe?
- Ah! E já agora e para terminar! São mesmo brancas! As minhas cuecas! É que hoje apeteceu-me trazer cuecas vestidas!

terça-feira

Falemos de mim, então.
Como me é dificil manter uma conversa séria com um homem que usa meias brancas. Frouxas nos artelhos. Que escondem nos sapatos de sola demasiado grossa para esta época, umas biqueiras e calcanhares já esfarelados pelo uso, amarelentos. Traça a perna, parece não se importar com o aspecto desleixado das suas meias e do impacto que esta visão tem sobre mim.
Enquanto folheia o meu processo vai deitando o rabinho do olho para as minhas pernas traçadas. Recém bronzeadas e com um halo a âmbar. Deve estar a tentar adivinhar de que cor será a minha lingerie. Talvez branca por causa da saia branca, mas prefere imaginá-la preta, é outra sedução, outro fétiche.
Falemos de mim e como acho sinceramente que estas sessões fazem melhor ao meu potencial e hipotético curador de almas do que propriamente a mim, a doente.
De como lhe noto um agrado na voz quando me vem receber à porta de mão estendida e me cumprimenta com um ênfase exagerado como estamos hoje.
Hoje estamos como estávamos ontem, cretino.
Falemos de mim pois, e de como creio que este idiota é o tipo de homem que gosta de mandar ramos de flores anonimamente e deixar escapar entre uma roda de amigos que desempenha o papel de um admirador secreto. De como se sente especial quando os amigos comentam a sua atitude. No fundo o prazer é mais dele do que a visada. É uma espécie de masturbação mental ao delinear a cena da mulher ao ser surpreendida pela entrega do ramo e após os primeiros segundos de surpresa, a inquietação quanto à identidade do autor de tal façanha.
Falemos de mim e de como um homem que usa peúgas brancas é um sério candidato a admirador secreto.
Deixou caír as suas notas. Talvez ao baixar-se para as recolher consiga ver de facto, de que cor são as minhas cuecas. E de como tem as meias frouxas nos tornozelos.

segunda-feira

Outro ramo. Mas que parvoíce vem a ser esta? Uma rosa com uma flor de ananás, deve ter custado uma fortuna ao espertinho... e nem sequer gosto. Ainda mais, desconhece que as flores nunca devem ser oferecidas em número par. Anda a apalpar terreno a ver se descobre do que realmente gosto. Não gosto deste tipo de coisa. Mas que coisa... só me faltava isto, será que vai todos os dias oferecer-me um ramo? Ainda mudo o negócio para uma casa funerária...
- Quem é que trouxe isto Magalhães?
- O mesmo estafeta que da outra vez.
- Mais nada?
- Mais nada, como?
- Um registo, um cartão, qualquer coisa...
- Só o registo da entrega.
Acho que ele está com vontade de rir. Contidamente.
- Tem um admirador secreto Edna...
Nem lhe respondo. Este tipo de observações tão evidente não merece o meu comentário.
- Se isto se voltar a repetir não aceitam o ramo.
- Mas como?
- Não aceitam! Não assinam o registo de entrega!
- Mas o estafeta só está a fazer o trabalho dele!
- E eu estou a dar-lhe uma ordem!
- Desculpe?
- O que é que não percebeu Magalhães?
Está vermelho, nunca o tinha visto assim. Contrariado. Contidamente. Os homens detestam receber ordens das mulheres seja em que circunstância for, mesmo eu sendo a patroa e ele o empregado.
- Muito bem, como queira.
- É como lhe disse. E se houver algum problema com o estafeta, chame-me. Se não é capaz de resolver uma simples questão como esta...
- Não se trata disso, como bem sabe!
Agora toquei-lhe na virilidade, está crispado, tem as mãos no cinto pronto a enfrentar o adversário, neste caso eu.
- Pode ir Magalhães.
- Muito bem!
- Feche a porta quando saír se faz favor.
Quase sinto o chão a tremer quando se afasta, bate com a porta. Nem parece coisa do Magalhães sempre tão educado e controlado. São sempre muito civilizados até lhes tocarem no dominio e na macheza. Se fosse uma mulher era capaz de ter sido bem pior... talvez fizesse uma cena de histeria e amanhã dava parte de doente para não aparecer.
Estou tentada a jogar este jogo. Vamos ver como se sai este admirador. Talvez aproveite os raminhos dele para lhe pôr na campa quando acabar com ele.

domingo

Tenho uma banheira XXL. Enquanto não a arranjei não sosseguei. Depois que a tive raramente a usei.
Mas hoje resolvi mergulhar nela, accionar o mecanismo de hidromassagem, borbulhar a água até a espuma começar a saír e caír no chão. Está-se bem. Tranquilo. Se me afundar totalmente deixo de ouvir os sons da vida. Os sons da água têm outra vida, acho que nunca tinha pensado nisso... deixei-me abandonar completamente, muito vapor, os espelhos que forram as paredes embaciados. Senti os braços e as pernas a subirem e a boiarem naturalmente, sem peso algum, tudo tão leve que parecía que tinha deixado de existir.
Veio-me à lembrança aquelas mulheres que se suicidam nas banheiras. Acho que hoje comecei a percebê-las melhor, todo este estado que parece não se estar, já um anúncio de ausência.
Observei os meus dedos dos pés a espreitarem por entre o azulado da espuma. Ficam com outra aparência os pés molhados. E os mamilos. Toquei-me, não para me excitar mas porque acho o meu corpo bonito e dá-me prazer olhá-lo e desta maneira tão diferente, entre a espuma, a água e as minhas próprias mãos adquire-se outra identidade.
Tudo tão leve, tão etéreo, quase perfeito.
Se cortasse os pulsos não me ía custar nada. Só a água passaría de azul a vermelho.
Acho que esta banheira é estranha. Demasiado grande para mim. Só para mim. Quando ele estava comigo tinha outra, muito mais pequena. Cabíamos os dois, entrelaçados nas pernas.

sábado

Há fins de semana que detesto, parecem arrastar-se numa eternidade doentia e molarenga como moscas ao sol. Não gosto de parar nos semáforos e ver no carro ao lado a familia feliz. Eles sempre de camisas aos quadrados, muito desabotoados exibindo uma farfalhuda cabeleira no peito, elas sempre viradas para trás tentando educar naquele espaço as crianças tão malcriadas, o cabelo de madeixas oleoso, só no final da tarde vão ao cabeleireiro.
Aproveito estes dias para trabalhar, umas vezes no escritório, outras em casa no portátil. O mercado é uma selva, não dá para fechar os olhos e descansar à sombra da bananeira, há pesquisas a serem feitas, investigar sobre potenciais clientes, marcar os maus pagadores, bisbilhotar os rivais e as suas campanhas.
Não aprecio saír nestes dias, demasiada gente, demasiadas normas e rituais, parecem manadas a serem conduzidas para um só objectivo.
Por vezes recebo um, dois amigos cá em casa, são sempre eles que vão para a cozinha.
Se estou sózinha e a empregada não me deixou nada preparado ligo para um take away e desforro-me nos picantes de uma comida indiana ou tailandesa. Depois, também não sou o que se possa chamar de um bom garfo. Como mais por necessidade, mas escolho, cuido-me embora me vingue de quando em vez nalguns pequenos prazeres como um bom gelado.
Não me entusiasma o fim de semana.
Quem será que me mandou aquele ramo?

sexta-feira

- Entre. Feche a porta.
Deve ter vestido o casaco para falar comigo, não lhe vejo os punhos da camisa, deve ter as mangas enroladas, ainda vem a ajeitar o nó da gravata ligeiramente folgado do colarinho desapertado.
- Por acaso sabe quem trouxe isto?
- Não sei. Estava ao telefone.
- Mas foi você que me trouxe o ramo.
- Foi a mim que a Susana o entregou, só por isso.
- E porque não foi a Susana a entregar-mo?
- Bem, suponho que é por ser eu que venho aqui ao seu gabinete...
- O chefe da equipa a entregar um ramo de flores?
Abre os braços levemente num gesto de quem não tem grandes explicações para adiantar. Esta gente acha que vir ao meu gabinete é o mesmo que ser chamado ao quadro para resolver uma equação matemática. Fogem de entrar aqui e se lhes peço para fechar a porta devem imaginar que os chacino.
- Mas olhe que é um bonito ramo...
- Para quem gosta de flores campestres, não faz o meu género.
Tossicou levemente, quase lhe adivinho um sorriso trocista mas controla-se.
- Sabe quem foi o estafeta que veio trazer o ramo?
- Não, não liguei muito, estava ao telefone como lhe disse, mas posso perguntar à Susana.
- Deixe. Não perca mais tempo com isto.
Vira costas, deita a mão ao puxador para abrir a porta e saír, hesita, olha-me.
- Quer que arranje uma jarra com água?
- Não se preocupe, já têm lugar para onde ir.
Peguei no ramo e enfiei-o no cesto de papéis.
- Edna! Vai...
Cala-se. Conhece-me. Sabe que não vou fazer comentários. Encaro isto como uma brincadeira de mau gosto. Algum esperto que de todo desconhece como funciono achou que me faría um agrado ao enviar-me um ramalhete de malmequeres com um girassol descomunal.
Esta treta de admiradores secretos é uma estupidez, não lhe acho graça nenhuma.
Acho que mesmo que fossem gladíolos roxos não lhe acharía piadinha. A ver se a mulher da limpeza não se esquece de vazar o meu caixote do lixo.

quinta-feira

Não visito a minha mãe amiúde.
Não vale a pena, quanto mais as visitas mais a possibilidade de me aborrecer e, facto consumado, nunca estaremos de acordo em coisa alguma.
Mas sinto-me impelida a ir lá a casa, olhá-la, sentir os cheiros que são sempre certos, sempre os mesmos, o relógio de parede a fazer aquele tic-tac que dá para compormos musica no silêncio, as fotografias na sala de estar.
Nada muda de lugar, sempre conheci as mesmas coisas nos mesmos sitios e até de olhos fechados sei o conteúdo de cada uma das gavetas, as almofadinhas de crochet cheias de alfazema, a caixa com botões, a velha lata de pó de talco.
É incompreensível que conhecendo eu os seus rituais e a sua forma de estar ainda continue a responder-lhe às suas provocações veladas quanto ao meu estilo de vida, às suas manifestações de desagrado pela escassez de visitas que lhe faço, aos seus lamentos de não ter descendência minha.
- A filha da vizinha do r/c já teve bébé.
(Lá vamos nós).
- Hum... não sei quem é.
- Sabes sim, a Teresinha!
- Sei lá quem é a Teresinha!
(A Teresa, a gorda da Teresa que fazía bicos ao namorado nas escadas do prédio quando este a vinha trazer a casa.)
- A Teresinha, Edna! Aquela muito bonitinha, assim um bocadinho cheia, lourinha, a filha da vizinha Matilde! Não te lembras?
(Então não me lembro?! Quando a surpreendi com a boca na botija, borrou-se de medo que eu fosse contar à mãe Matilde!)
- Teve muita sorte. Arranjou um belo marido! Aquele rapaz com quem namorou muito tempo, lembras-te? Vinha sempre trazê-la a casa...
(Ah, pois vinha! Já sabía o consolo que o esperava!)
- Não estou mesmo a ver Mãe. Sabes que não ligo muito à vizinhança e já saí daqui há bastante tempo...
- Sim, para viveres sózinha. Nunca percebi... Não estavas bem aqui comigo?
- Não vamos começar, peço-te. Vim visitar-te, saber se estás bem... nem sequer me posso demorar...
- Vens sempre à pressa. Visita de médico! A Teresinha vem todos os dias ver a vizinha Matilde!
(Oh! Não! Esta agora?! Comparar-me com aquela gorda?)
- Já vi que estás bem, como sempre. Vou-me embora.
- Quase mais valia nem teres vindo!
- Venho pouco, é verdade. E tu consegues sempre fazer com que perca a vontade de aqui estar muito tempo... e se achas que não vale a pena... Como queiras.
- Que queres dizer com isso?
- O que entendeste. Ou que queiras entender. Percebes sempre as coisas à tua maneira, hoje não será diferente.
Senti o fiozinho de sangue a começar a aquecer-me o lábio.
- Pronto, pronto... anda cá rapariga, estás a sangrar. Nunca te curaste disto.
Sentei-me no banco da cozinha, costas apoiadas nos azulejos frios. Senti a mão quente da minha Mãe a tocar-me no rosto, o algodão macio a estancar-me o sangue, ela a ajeitar-me para a sua barriga, o pano da bata com aquele cheirinho de sabão, a lavado.
Olhei-a de baixo para cima. A minha Mãe é mesmo bonita.

quarta-feira

Preciso rapidamente de redecorar o quarto de hóspedes.
Sinto que quando o fizer alguma coisa mudará. E no entanto, esta falta de objectividade em localizar o que se passa de facto comigo nos últimos tempos, irrita-me. Esta "uma coisa" que não sei identificar não faz parte da minha essência e nunca me encontrei realizada em actos tão comezinhos como decorar um cómodo para dar resposta ao mal-estar que me atacou.
Não sou mulher de feitiçarias, talismãs ou crente em maus-olhados.
Acho essas coisas de uma pobreza mental a toda a prova. Baseio a minha vida em factos, soluções e suposições só se forem como meio de raciocinio para atingirem uma lógica.
Já me basta o meu saco de lixo para a parte que não controlo, toda a emoção que tolhe a conduta.
Das vísceras que o enchem deparo-me com lágrimas, as poucas que habitualmente solto, ouço sons de dor e reconheço-os como ecos da minha voz.
O meu saco do lixo tem vindo a pesar toneladas, carregou-se sem eu dar conta, não sei se o consigo aguentar. E no entanto é um peso sem partilha, não posso nem quero pedir uma mãozinha para me ajudarem a transportá-lo, é meu, salvaguardo-o de candidatos a parceiros, resguardo-o de olhares indiscretos.
Abro o saco e retiro de lá um quarto de hóspedes em miniatura, pintado a vermelho sangue, o meu. Foi lá que passei a noite quando ele se foi e quando o reencontrei. É frio, vejo alguém enrolado, joelhos ao queixo, uma posição fetal, está de olhos abertos, não consegue fechá-los e tranquilamente descansar sem pensar que vai ser atacado a qualquer instante.

terça-feira

Falemos de mim, então.
Do que estes dias de ausência me trouxeram ou talvez não.
Continua tudo na mesma, cruzo-me na sala de espera com as mesma caras de sempre. Provavelmente arrastar-se-ão por décadas neste vicio de falarem de si, ele continuará a fazer os seus jogos de palavras informando ciclicamente que houve grandes avanços e este banho-maria manterá as duas partes contentes: os pacientes por despejarem o saco, ele por manter o porco a engordar.
Falemos de mim, pois, e destes golpes que tenho sentido na carne. Feitos a chicote, não sei de onde vieram, apenas senti o ardor a estalar no lombo pela surpresa: ele, as férias, a Paula e o Daniel, até o Magalhães. E eu.
- Está com bom aspecto! Que bem lhe fizeram as férias!
(Apetece-me abrir as pernas e descrever-lhe como o sueco me tratou).
- E como estamos?
(Detesto esta conversa do "nós").
- Vamos falar destes dias? Alguma coisa para revelar?
- Não.
- E como se sente?
- Bem.
(Vais ter que suar para ganhar a sessão).
- E esse encontro? Tem vontade que ele aconteça de novo?
- Não.
- Significa que se estivesse ao seu alcance nada faría para que ele acontecesse?
- Exactamente.
- Mas no entanto é uma relação que a deixa conturbada, talvez precise de ser esclarecida... Disse-me que houve uma separação sem discussão sobre o assunto...
- Foi uma ruptura, não uma separação.
- Encara-a de modo definitivo?
- Arrumada.
- E no entanto, perturba-a ver que do outro lado a vida seguiu.
- Do meu também.
- Inconstantemente? Dado a procura nos vários parceiros sexuais que tem tido.
- Gosto de sexo. Apenas isso. Não são relações amorosas.
- E se se proporcionasse voltar a ter sexo com ele? Faría para que isso acontecesse?
- De modo algum. Já o conheço. Pretendo coisas novas.
- No entanto, agita-se interiormente pela surpresa que as situações da vida lhe têm posto à frente, o que a faz entrar em contradição. E em conflito consigo mesma.
Não estou com pachorra para ouvir este gajo a falar do que já sei.

segunda-feira

É disto que eu gosto, desta correría, destes imprevistos e derrapagens, gente a entrar e saír, o som do telefone, reuniões.
Parece que não fiz mesmo falta alguma, tudo sob controle, o Magalhães saiu-se bem mais uma vez.
- Como correram as férias?
- Bem, correram, férias sabe como é.
- Espero que venha retemperada. Isto por aqui não abrandou. Temos mais um potencial cliente...
- Óptimo! Isso é que são boas noticias! Precisamos de trabalho! Todos, não é assim?
- Claro, Edna! E este parece ser um bom cliente.
- Todos são bons clientes desde que o sejam nossos. Os que se vão são maus clientes.
- Vejo que vem cheia de ânimo, as férias fizeram-lhe bem.
- Não foram as férias Magalhães, eu gosto do que faço. Vamos lá ao que interessa.
- Bom, quanto ao projecto do coreano...
- Ouça, não vi o Daniel...
- O Daniel pediu para entrar de férias...
- Mas ele não tinha férias marcadas para Agosto?
- Sim, mas veio falar comigo e disse que precisava agora de uns dias. Não vi que houvesse problema nessa antecipação.
- Por causa da Paula, com toda a certeza. Ela também foi de férias não é?
- Sim, mas...
- E afinal qual é o ponto de situação desses dois? Não vou tolerar mais baixas de rendimento.
- Acho que vão mesmo adiante, se quer saber...
- Adiante? Adiante como?
- O Daniel já se separou da mulher, está a viver com ela.
- O quê?!
- É isso mesmo Edna. Não é um simples affaire, é mesmo sério.
- Significa isso que terei de despedir os dois?
- Não entendo... Desculpe mas não vejo que relação tem a empresa com a vida privada deles... nem vejo que justificação vai arranjar para os despedir.
Naquele momento odiei que ele tivesse razão. Odiei que ela tivesse tido razão para confiar no Daniel e odiei o Daniel por cumprir a sua palavra ao separar-se da mulher. Odiei que fosse mesmo uma relação séria.

domingo

Já estava farta de férias. Não percebo como há gente que consegue ficar sem fazer nada. Falta-me a agitação, o stress, a adrenalina dos problemas em que preciso de me concentrar para encontrar uma saída para os resolver.
E fartinha de andar com a mesma roupa, ainda entrei em despesas e comprei um vestido branco.
Foi por uma boa causa, é verdade.
Conheci um sueco no hotel, um moreno de olhos azuis escuros, uma perdição. Convidou-me para jantar e não podía voltar a aparecer com o vestidinho preto. Embora ache que para ele vestido preto ou branco lhe fosse completamente indiferente, já que o objectivo era mesmo ver-me sem roupa.
Foi um jantar muito agradável à luz das velas, tudo muito romântico. Acho que ele deve pensar que as mulheres precisam sempre destes retoques para se deixarem ir. Se calhar até sim, mas eu no prato de peixe já tinha decidido que o quería, portanto deixei ir a coisa até ao fim, muito convencido no seu inglês um pouco aflautado de que estava a levar a melhor.
A seguir dançámos, creio que me tentava impressionar.
Mas o que me impressionou mesmo foi a arte com que fez o melhor cuninlinguus que recebi nos últimos tempos. Uma coisa mesmo bem feita, com tempo, vagarosa, com mudanças de ritmo e até com paragens na altura oportuna retardando o orgasmo. Sei que a minha depilação artistica também o entusiasmou, ou pelo menos surpreendeu-o, talvez esperasse um monte de pêlo, qualquer coisa semelhante a estar a lamber uma alcatifa.
E o melhor é que tivémos um do outro aquilo que queríamos, acompanhado de uma conversa inteligente e depois cada um seguiu a sua vida, sem promessas nem actos tresloucados de nos sentirmos apaixonados. Diz que me há-de procurar quando voltar a Portugal. Pois, está bem.
Estou renovada, pronta para o trabalho, farta de férias.

segunda-feira

- Magalhães? Edna. Regresso esta noite e como amanhã é feriado não sei se me quer passar algum assunto... aproveitava a calmaria do escritório e resolvía. Assim na 4ª estava tudo ao dia.
Fala devagar, acho que aguardava o meu telefonema.
Tranquiliza-me, diz que está tudo bem, tudo resolvido.
- Nenhum problema, então...
Sei que ele é competente mas há sempre pequenos nadas que tenho de ser eu a resolver. Afinal aquilo é meu, ele é um empregado.
- O quê? Esticar as férias?
Tenta convencer-me a estender a semana, há o feriado dos Santos Populares, nem sequer me lembrei dessa coisa...
- Mas não precisa de mim aí?
Diz que não, está tudo em ordem.
Bom, assim sendo vou ficar por aqui. Pôr-me a mim em ordem.

terça-feira

Fiz uma mala pequena e um necéssaire: bikini, calções, t-shirt's, um par de jeans, uma blusa branca, um vestido preto (nunca se sabe).
Eu não sei para onde vou, para onde quero ir, apenas sei que não quero estar em casa.
Está tudo entregue ao Magalhães quanto à empresa.
Quanto a mim... só a estrada o dirá.
Como abomino despedidas apenas digo Até Já.

segunda-feira

Dormi mal.
Acordei muitas vezes com a estranha sensação de o ouvir chamar-me. Levantei-me e fui deitar-me no quarto de hóspedes.
Não sei porque o fiz, porque sempre o faço quando as recordações se tornam mais violentas ou como neste caso o tenha revisto ao fim de tanto tempo.
Fiquei de remodelar aquele quarto... acho-o frio, impessoal.
Não sei porque teimo em sujeitar-me àquele ambiente. Trago o meu saco, abro-o, mas nem sequer tive vontade de vasculhar e encontrar fosse o que fosse. Parece que me bastaram as últimas horas.
Dormi mal porque vivi mal as últimas horas.
Passará mais quanto tempo até voltarmos a encontrar a indiferença num aperto de mão, num beijo de cerimónia, num frete de termos outros acompanhantes, de eu voltar a dormir mal por causa dele que me chama e fugir de novo para o quarto de hóspedes frio, impessoal.

domingo

Vi-o ontem à noite.
Continuamos a frequentar os mesmos sitios, não foi coisa do destino ou nada de romanceado, apenas gostamos e vamos, portanto havía uma forte probabilidade de nos cruzarmos.
Ele acompanhado, eu também. Aliás estava muito bem acompanhado, a mulher era lindissima mas também não passava disso que quando nos cumprimentámos e fizémos as apresentações deu logo para ver que aquele tom nasalado do "ôi!" é de uma galinha.
Anda a comê-la, nada mais. Que lhe faça bom proveito, até pode ser que se engasgue com as penas. Mas de algum modo surpreende-me: Ele nunca teve muita paciência para este tipo de fulaninhas.
Quando chegou a cara dele perto da minha senti o aftershave, a água de colónia. Mudou. Este era um cheiro mais maduro, entre madeiras e couro ou talvez especiarias. No meu tempo era mais fresco, um travo de lima. (Sempre tive um bom olfacto). Tinha o rosto quente, isso senti muito bem, e a mão direita também, pois esticou-me primeiro a mão e depois é que chegou a face à minha para me beijar.
Estava bem vestido, descontraído mas bem.
Ficámos os quatro a fazer conversa de ocasião, a dizer banalidades de copo na mão, eu com vontade de estalar os dedos e fazer desaparecer o meu acompanhante, que não parava de dizer coisas engraçadas e que fazíam a galinha rir de boquinha apertada.
Por mais que tente lembrar-me do que ele me disse não me consigo recordar.
Parece que me fizeram uma lavagem ao cérebro e me levaram aquele pedaço. Lembro-me de nos despedirmos, cada par voltou aos seus assentos, tudo muito rápido. Ou talvez não... Sinto-me confusa, não consigo medir espaços nem tempos.
De quando em vez olhei-o pelo canto do olho, parecía estar a ter uma conversa muito séria com a outra, nunca olhou para mim, ou pelo menos não cruzámos o nosso olhar. Nem falámos com os olhos, nem emanámos mensagens do género tenho saudades, lembras-te de nós, ainda penso em ti, não, nada disso.
E de repente, quando dei conta só encontrei os lugares vazios, saíram e eu nem me apercebi.
A culpa foi do gralha que não se calou a noite inteira. Como fala este homem! Nem metade ouvi da conversa chata que teve!
Ainda bem que tinha levado o meu carro. Assim cada um seguiu o seu caminho e no trajecto tive tempo de pensar que o tinha reencontrado.
Ao fim de um ano e cinco meses.