terça-feira

Não sei o que é que se passou mas estou em casa da minha Mãe. No meu quarto de adolescente. Decorado ao gosto dos meus Pais.
A minha Mãe disse-me que vou para uma clinica durante uns dias. Não sei fazer o quê e tão pouco me posso dar a esses luxos, há imenso trabalho para fazer, novos clientes, novas campanhas.
Disse-me que daqui a pouco me vêm buscar.
Não quero ir.
Mas não tenho força para dizer não. E só me apetece dormir.
Não sei quando volto. Se volto.
Ou se já morri e não poderei voltar a escrever aqui sobre mim. Edna.

segunda-feira

- Feche a porta Magalhães. Não quero ser interrompida.
- Algum problema?
- Sim, algum problema. O problema da orquídea.
- Não estou a segui-la...
- A orquídea, Magalhães. Você é um homem inteligente. Não me faça perder tempo com mais explicações.
- Ah! A orquídea que eu lhe ofereci!
- Isso.
- Parece que não gostou...
- Nem um bocadinho.
- Não gosta de orquídeas, é isso? Como são flores diferentes achei que gostaría...
- Pare lá com isso. Sabe perfeitamente qual é o problema de eu não ter gostado.
- Se quer saber, não sei mesmo.
- Nem adivinha?
- Não, não adivinho. Mas adivinho que a Edna mo vai dizer.
- Magalhães: eu não estou interessada na sua amizade, no seu companheirismo, no seu ombro, na sua compreensão e tão pouco no seu pirilau.
- Desculpe?!
- É isso mesmo que ouviu.
- Mas...
- Ainda não terminei. O que eu quero dizer, e muito sinceramente tinha-o noutra conta, é que apenas pretendo que você seja um óptimo profissional.
- Tem razões de queixa?
- Até aqui não. Mas se persistir em atitudes de aproximação para além dos interesses da Empresa terei que tomar uma atitude.
- Isso é uma ameça?
- Não, não é. É um aviso.
- Tanto barulho por causa de uma orquídea...
- Você sabe perfeitamente que o problema não é a merda da flor! É o gesto que você pretende que aquela porcaria tenha! Parece que não me conhece?! Acha que algum dia eu podería deitar-me consigo?!
- Espere lá, Edna! Está a ir por caminhos obscuros! Quem lhe disse a si que eu quería deitar-me consigo? Ou pensa que encanta todos e eu sou mais um?
- Não?! Então para que foi aquilo? Não foi o principio do que você tem em mente já há algum tempo? Comer-me?
- Você está doida, Edna! E a precisar de tratamento urgente!
- Tratamento? Que é que quer dizer com isso?
- Isso mesmo! Tentei aproximar-me de si porque dá pena ver a mulher lindissima que é e não ter ninguém! E não falo de homens! Falo de amigos, gente que a ouça!
- Está aos gritos Magalhães! Daqui a pouco vai trazer-me o saco de lixo e tentar arrancar-me os braços, eu sei!
- O quê?
- É isso mesmo!
- Doida! Doida varrida! Que saco do lixo? Não estou para aturar isto! Era o que mais faltava!
- Muito bem! Então só há uma coisa a fazer!
- Há pois há! Mas não pense que lhe dou essa satisfação! Demito-me! Ou pensava que me despedía?!

domingo

Contra tudo o que já prometi a mim mesma e jurei e voltei a jurar, fiz uma coisa que acho que se me dissessem que algum dia o faría a minha resposta sería uma gargalhada. Por ser impensável "ver-me" nessa atitude e por achar que me conheço bem.
Mas não. O ser humano encerra em si a capacidade de se surpreender em cada momento da vida, nomeadamente nos dificeis e que nos ultrapassam na racionalidade.
Já tenho feito coisas levadas da breca e nem mesmo estas coloquei de lado como não sendo de minha autoria mas o acto tresloucado de pegar no telefone e ligar para ele, creio ter sido o mais singular de toda a minha vida.
Não disse nada. Limitei-me a ficar a ouvir a voz dele a perguntar quem é. A voz dele e o bater do meu coração.
Ele desligou.
Ainda fiquei algum tempo a ouvir o sinal repetido e irritante da chamada cortada. Hesitei em ligar outra vez. Só para o ouvir de novo.
Mas um fio de sangue muito fininho apareceu por baixo das minhas narinas e eu despertei para a realidade.
Que figura!

sábado

Sonhei com ele. Uma confusão em que ele me oferecía braçados de orquídeas em que me arranhava toda até aos cotovelos e quando procurava pelos espinhos nada encontrava. Aparecía então o Magalhães com o meu saco de lixo, de boca aberta, e tentava arrancar-me os braços para os põr junto do que tenho dentro do saco. Eu gritava com ele, dava-lhe ordens, dizía que quem mandava era eu, tudo aos berros e muito sangue em pequenas gotas que ía deixando manchas por todo o lado. Pedi ajuda a ele, olhei-o, inexplicavelmente para ele não abría a boca, apenas lhe pedía socorro com os olhos. Ele sorría, compunha-me o cabelo, nem uma única gota de sangue o tocava e quanto mais eu o olhava e implorava mais ele se distanciava até ficar imperceptível.

sexta-feira

Não sei se adivinhando o meu propósito se por mera coincidência ou por nenhuma destas duas passou todo o dia de hoje sem conseguir ver o Magalhães para além de um passo corrido quando apressado cruzou por várias vezes a porta do meu gabinete.
Ainda o chamei, uma, duas vezes; Da primeira nem me ouviu, da segunda agitou o indicador e largou um "agora não dá!" e seguiu caminho.
Não forcei o encontro porque afinal esta conversa extravasa em tudo o que é o negócio e mesmo os peões - eu e ele - sendo parceiros de trabalho e a situação tenha decorrdio em horário laboral quero deixar bem marcado, demarcado até, que não vou tolerar interferências pessoais na Empresa.
Esperei pelo final do dia quando a maior parte das pessoas já se foi e logo hoje, sexta, está sempre tudo com uma pressa descomunal. Ainda gostava de saber porquê, pois se correm para as suas vidinhas marcadas de fim de semana tão rotineiras como os dias úteis. Parece que já os vejo em fato de treino... e elas nos seus ténis de marca que apenas vêem a luz do dia nestes dois e será sem dúvida a luz artificial dos centros comerciais, que correr mesmo, treinar, suar custa como tudo.
Quando perguntei por ele disseram-me que já tinha saído, tinha ido ver um cliente, não devía regressar, dissera bom fim-de-semana.
Ok.
Mas na segunda não se livra, nem que seja amarrado.

quinta-feira

Não posso dar-me ao luxo de dispensar o meu Chefe de Equipa.
Mas também não posso ignorar o seu gesto que verdade, verdade, ainda não sei se terá alguma na manga.
A minha relação com o Magalhães é e sempre será, pura e estritamente profissional. E ele sabe-o, já me conhece um pouco nas atitudes que tomo relativamente a trabalho, por isso o inusitado da orquídea veio levantar uma barreira.
Não vejo porquê tanto interesse em tentar uma aproximação, uma ajuda como ele diz. Especialmente porque não preciso de ajuda e mais concretamente porque nunca me abriría com uma pessoa que se cruza comigo diariamente e sabe muito sobre as minhas jogadas aqui na empresa.
Além disso, tenho o pateta alegre, pago-lhe para me ouvir, para eu o sarnar com os meus silêncios, para o deixar em ponto-rebuçado.
São duas coisas distintas.
E distinto e oposto são relações de trabalho e de amizade ou até mesmo amor.
Não acredito na sua funcionalidade nem lhes dou credibilidade.
Atirei-me ao estagiário que estava de saída por isso mesmo, porque estava de partida e porque naquela tarde o dia tinha-me corrido bem e apetecía-me divertir. Mas nem chegou a acontecer nada! Assim que lhe pedi que fechasse a porta e lhe solicitei a virilidade o rapaz fugiu. Literalmente.
O Magalhães não é o estagiário. É um homem. Um excelente profissional.
Vamos ter de conversar. Mesmo. E sem floreados.

quarta-feira

Falemos de mim.
De como disse que não voltava cá mais, mas os passos no seu hábito trouxeram-me de novo a esta sala que passou de verde-água a um creme vomitado com uma alcatifa também creme que já tem a minha marca de sangue na contrariedade de aqui estar. E que cá regresso.
Falemos de mim mas não falemos dos últimos acontecimentos e das revelações que se atiraram à minha cara como chapadas violentas que castigam mais por dentro do que as marcas vermelhas dos vergões deixados pelos dedos das mãos.
Falemos de tudo e não falemos de nada.
Evito-me, prefiro a estratégia dos monossílabos, a pose provocadora que ressalta as minhas coxas ou o debruçar-me sobre os meus joelhos à procura da resposta para dar a este pateta que se desliga por completo quando se atira ao meu decote e tenta adivinhar se trago ou não soutien. Deixo-o marinar na interrogação, por vezes afago-me disfarçadamente até excitar o mamilo e deixá-lo completamente aflito pela tesão que lhe dói dentro das calças. Tapa-se com os apontamentos da minha ficha. Nem desconfia que nada disso o cobre. Nem o sexo inchado nem o que diz sobre mim, sei-o.
Falemos de mim e de como está cara a vida, troquemos banalidades esquecendo que lhe pago à hora balúrdios, mas hoje dou por bem empregue o meu dinheiro, preciso deste bocado sem fronteiras onde tudo me é permitido dizer e eu decido não falar. Do que me dói, claro.

terça-feira

- Posso?
- Entre Magalhães. Preciso mesmo de falar consigo sobre a reunião de amanhã.
- Olhe.
Eu olho. Nas mãos do meu chefe de equipa uma pequena embalagem transparente, um laço enorme a negro.
- O que é isso?
- Hoje sou eu que lhe trago o presente do seu admirador secreto.
- Deixe-se disso, sabe bem como me irritam esse tipo de coisas!
- OK, tudo bem. Tome.
Avança com a pequena caixa até à altura do meus olhos. Eu olho-a. Está de mão estendida com a caixa, sinto que me observa a tentar descobrir o que vai na minha cabeça, aguarda que eu estenda as mãos para segurá-la.
- Pode deixar aí...
- Não vai abrir?
- Abrir? Para quê? Já vi o que é. Uma orquídea.
- É uma orquídea sim! Mas traz um cartão lá dentro...
- Está bem, mas agora não! Deixe aí que quando tiver tempo logo vejo.
Ouço-o a prender a respiração, segura as palavras num modo contido.
- Como queira!
Pousa a caixa e afasta-se em direcção à porta.
- Magalhães! Onde vai?
- Trabalhar! Tenho um monte de coisas na minha mesa.
- Que esperem! Temos de falar, eu não lhe disse?!
- Depois Edna! Depois! Agora não tenho tempo!
- Como?
Deixa-me a falar sózinha, abre a porta, sai e bate com a porta.
Mas que coisa?!
Donde saíu este agora?! Mas o que é que se passa? Esta fita toda por causa de uma porcaria de uma orquídea?!
Deixa lá ver... O cartão, é verdade.
Abro a caixa transparente: Uma orquídea branca raiada a ameixa exibe o seu esplendor, quase parece de carne, quase parece artificial. É linda. Traz umas gotículas no seu interior, lembra-me um sexo de mulher. Cheiro-a embora saiba que as orquídeas não têm aroma. Por baixo um cartão pequenino dobrado ao meio. Abro-o.
"Porque não me deixa ajudá-la? Antes que murche como esta flor há-de murchar".
Vem assinado. João Magalhães.
Não quería nada que isto estivesse a acontecer...

segunda-feira

Cheguei cedo, muito cedo. Sou quase sempre a primeira a chegar, não por uma questão de dar o exmplo como dona da empresa mas porque de facto, gosto de vir cedo para preparar o dia.
Corri como todas as manhãs e fez-me bem aproveitar o nascer do dia quando ainda não há muito calor.
Sentía-me abafada em casa, uma falta de ar, um peso no peito, nem mesmo o ar condicionado aligeirou o ambiente. Cá fora consigo respirar, o som da rua lembra-me vida.
Cheguei mais cedo do que o habitual porque preciso de encontrar um decorador para o quarto de hóspedes e não quero ocupar o tempo da empresa com estas questões particulares. De hoje não passa, terei mesmo de arranjar uma solução. Não aguento mais passar em frente àquela porta e saber o que está lá do outro lado. Sei que mudar o aspecto das coisas não altera a sua essência mas ajuda a mascarar o que não se pretende lembrar e, assim estampado aos olhos como está obriga-me a ver um filme que não gosto, não quero e recuso.
Sinto que qualquer coisa se partiu em mim ou se perdeu. Ou então a achei. Ainda não estou certa do quê, se é bom, se é mau, se é apenas o virar de uma página na minha vida. Já virei algumas, não será esta que me obrigará a fechar o livro.
E não me posso permitir parar. Afinal ele também não o fez.

domingo

Não acredito nessa coisa de genes transportados até ao carácter. Que eles sejam transmitidos para a cor dos olhos, do cabelo, do perfil sim. Mas para a personalidade, de forma alguma.
O meio ambiente em que cada um é criado é parte integrante e decisiva para aquilo que há-de ser no futuro como adulto.
Por isso aquilo que a minha mãe disse não tem cabimento.
O pai que me fez era um canalha sem escrupulos, o pai que me cuidou era um homem grande e com principios.
Aprendi a respeitar a palavra dada e o silêncio da confissão com o que me criou; com o que se foi não aprendi nada.
Mas não posso deixar de ficar surpreendida com esse medo que a minha mãe referiu. Essa fuga perante a imensidão do que não tem palavras para definir exactamente o que é uma pessoa entregar-se a outra de corpo e alma.
Se encarar friamente a questão, sem o adorno dos filmes românticos do eternamente felizes, encontro nessa devoção do amor uma enorme violência praticada pelo próprio e pelo outro que exige esse amor.
Sei do que falo. Já amei. Mesmo. Dolorosamente. Até fisicamente doía. Não conseguía estar sem ele, parecía que precisava dele para me sentir completa. E no entanto, quando juntos, aquela sensação de ter as mãos presas atrás das costas, a sempre pergunta antes de qualquer gesto, amargava-me na boca, consciencializava-me para a perda de liberdade enquanto mulher, enquanto individuo.
Era uma inconstância cá por dentro. E depois, o medo. Um pânico crescente de que ele se fosse, que desaparecesse. Projectava quadros em que o matava se se ligasse a outra mulher, quase o odiava quando pensava nisso.
Não sei viver nem me revejo nesta dualidade de felicidade transbordante e o esconderijo de quem se sente acossado por um receio que ainda não aconteceu ou simplesmente se inventa nas horas de não estar de mãos dadas.
Confiava e desconfiava. Amava e fugía desse amor.
Talvez por isso ele tenha ido embora. Porque me conhecía tão bem, tão bem, que entendeu o que se passava comigo. Eu não fui capaz de aguentar e ele também. Cada um com os seus argumentos.
E do pai que me fez é bem provável que tenha sentido o mesmo...
O que deita por terra toda a minha teoria racionalista. E ainda me faz estranhar-me mais.

sábado

- Mãe, porque é que o pai se foi embora?
- Embora? Estás doida rapariga? O teu pai morreu.
- Não falo desse. Falo do que me fez.
- Donde vieram essas ideias agora?
- Porque é que ele se foi embora?
- Isso já foi há muito tempo. Deixa lá estar.
- Porque é que nunca me falaste dele?
- Tu nem o conheceste! Para quê essas perguntas todas?
- Porque quero saber.
- Mas porquê agora?
- Porque sim!
- Já não me lembro, isso foi há muito tempo.
- Não acredito que não te lembres!
- É verdade! Não me lembro mesmo!
- Eu estou aqui. Como é que dizes que já não te lembras?
- Que insistência! Não quero falar disso!
- Mas eu quero! Eu preciso de saber!
- Mas para quê? Nunca perguntaste nada, nunca quiseste saber, agora vens com essa novidade!
- É importante para mim. Saber como ele era.
- Já não me recordo, verdade mesmo. Passou muito tempo...
- Porque se foi embora mãe?
- Não sei... Vamos mudar de assunto.
- Porque não me queres responder?
- Mas que coisa!
- Responde e eu não volto a falar!
- Foi-se embora porque teve medo.
- Medo? Medo como?
- Medo de te amar.
- Não percebo...
- Também não te sei explicar.
- Tenta. Como é que ele era?
- Não sei, acho que pensei que sabía mas na verdade nunca soube como ele era.
- Medo de me amar... Ele não te amava?
- Isto é uma conversa sem pés nem cabeça!
- Responde!
- Amava sim e muito. Eu pelo menos achei que sim, mas quando se foi embora provou o contrário, estive sempre enganada...
- Como é que ele tinha medo de amar?
- Sei lá! Tinha medo de se dar, de confiar! Não sei!
- Tens de me explicar!
- Olha, tu és como ele! Chega? Tem de chegar! Não quero mais falar sobre isto! Não me aborreças!

sexta-feira

Falemos de mim, então.
De como passei a nada sentir depois de ter sentido tudo.
De como acho que nada mais voltará a magoar-me, a dilacerar-me, a ofender a minha vida. De como parece que o saco de lixo num instante se vazou e não acho lá nada, nem memórias, nem dores, nem bocados de ninguém e do sangue não há vestigios.
Falemos de mim e como me sinto enorme e fortificada.
De como todas as dores desapareceram e as sessões de análise deixaram de fazer sentido. Não volto lá mais.
Afinal a cura de todos os males passa pela morte em vida, matar de vez o que nos condenou a um purgatório.
Sou imortal.

quinta-feira

Hoje pus o bigode, a minha peruca ridicula de homem calvo, até enriqueci a figura com um adereço de barriga proeminente, a camisa de xadrez e gravata, com o blusão de fato de treino.
Estou verdadeiramente ridiculo.
Um verdadeiro e comum homem.
Escondo as unhas de manicure francesa nos bolsos, agito trocos no sonante do gesto, coço as partes baixas que aumentei com um maço de algodão.
Misturei-me com as manadas que desfilam pelo centro comercial. Quase passo despercebido, não fora a peruca que a maioria das mulheres olham e riem à socapa. Respondo-lhes no silêncio da imitação de lhes atirar beijos, as mais novas e em grupo riem-se descaradamente, as outras desviam o olhar incomodadas e chamam-me estúpido.
Na casa de banho publica masculina observo-os a sacarem do membro, olham em frente enquanto urinam, depois contemplativos quando sacodem rápido e por duas vezes flectindo quase imperceptívelmente as pernas.
Só alguns lavam as mãos. Mas todos se olham ao espelho. Os que não lavam as mãos, cheiram-nas, talvez para terem a certeza da sua marca odorifera depois de se terem tocado no pénis. A seguir compõem o cabelo, mas acho que é para alargar o território e exalarem no chamamento da fêmea.
Imitei-os no acto de urinar, escolhi um com bom aspecto, fiquei a admirar-lhe o tamanho, a cor, a maneira como agarrou numa parte de si. Ele não gostou. Primeiro lançou-me um olhar furioso e depois ameaçou-me, chamou-me paneleiro. Não me contive e ri. Ficou uma fera. Agarrou-me pelos colarinhos e atirou-me contra a parede encostando a testa dele na minha.
Foi quando se apercebeu de qualquer coisa, os braços em riste sobre o meu peito, apalpou-os, senti a mão bruta a apertar-me, os mamilos a endurecerem.
Deu-me uma forte sacudidela e bateu-me de novo com as costas contra o azulejo. Chamou-me grande paneleiro e disse-me para lhe desaparecer da vista. Lavou as mãos energica e vigorosamente. Saiu num passo apressado.
Nem por um momento lhe passou que eu era mulher.

quarta-feira

- Posso?
(Faço-lhe um gesto com a mão para que entre).
(Fechou a porta).
- Edna, estou preocupado consigo...
(Daí ter fechado a porta).
- Preocupado?
(Senta-se. Entrelaça os dedos de uma mão na outra. Olha para o tampo da minha mesa).
- Não quero que sinta que a invado de alguma forma...
(Agora olha-me nos olhos)
- Mas acho que não está bem. Nunca houve um só dia que não tivesse vindo aqui e ontem quando me telefonou, não gostei nada da sua voz.
- Eu estou óptima Magalhães.
- Se estivesse óptima tería vindo. Sei que isto é a sua vida.
- E é mesmo, não duvide.
- Deixa-me preocupado consigo... Sinto-a fragilizada, magoada com qualquer coisa...
- Não é nada disso! Deve ter sido uma daquelas viroses que chegam e que desaparecem tão rápido quanto nos deitam abaixo!
- E foi ao médico?
- Que disparate! Médico? Por causa de uma indisposição passageira?
- Não me parece que tenha sido passageira...
(Falou tão devagar que quase senti que me tirava a roupa com o olhar).
- Mas foi! Hoje estou como se nada tivesse acontecido.
- Edna, quero que saiba que estou aqui. Não quero meter-me na sua vida, longe de mim! Mas estou aqui, se eu puder ajudá-la...
- O que tem para me ajudar é fazer com que a gente não perca o novo cliente. Não só me ajuda como ajuda a empresa. E claro, todos os que dela dependem!
- Não é disso que falo...
(Pousou as duas mãos sobre a secretária, palmas à vista).
- É só disso que temos que falar, Magalhães. Não há mais nada.
- Como é teimosa! Desculpe-me a sinceridade! Teimosa!
(Não estava nada à espera disto!)
- Claro que sou! Acha que se gere uma empresa com brandos costumes?
- Lá está você! Nunca desarma! Nem mesmo quando lhe ofereço a minha amizade! Quando lhe demonstro que estou mesmo preocupado consigo!
- Empreste-me o seu saber. É dele que preciso para pôr a equipa a funcionar.
- Não pense que me engana!
(Mas o que é isto?)
- Magalhães, temos imensas coisas para fazer! Se não tem mais nada para me dizer...
- Teimosa!
- Vou fazer de conta que não ouvi.
- Isso! Despache-me! Dê uma de patroa! Fica-lhe bem!
- Quando saír feche a porta, por favor.
(Levantou-se. Bateu com a palma da mão nos papéis que estavam mesmo à minha frente).
- Eu vou. Mas não me deita abaixo com essa sua pose de dama de gelo!
(Agarrou-me a mão. Tem a mão quente, é macia. E forte).

terça-feira

Mesmo sem corpo - esse ficou vitima de um qualquer atropelamento fatal - sigo a minha vida. Parece que apenas tenho uma cabeça, um cérebro que se faz um todo de um corpo, perdi os braços, as pernas, o peito, o que mora lá dentro. Segue o líder de tudo isto.
E ainda bem.
Tenho multiplas coisas para resolver, a empresa não pode parar, eu não posso parar, a vida não ficou à minha espera.
Ter-me fechado durante 24 h foi mais pernicioso que restaurador.
Contra factos não há argumentos e não vou debater-me mais sobre o que aconteceu.
No fundo nada aconteceu.
Nada para além do que já sucedera há um ano e cinco meses ou pouco mais.
Foi nessa altura que o assunto ficou resolvido, não há por que chorar, não se morre duas vezes.
E já o disse: o papel de viúva não me assenta nada bem, quanto mais o da minha morte.
Vamos!
Eu preciso de mim.