domingo

Estou em casa da minha Mãe. Grogue. Percebo que me deram uma dose cavalar para impedir qualquer coisa que tivesse intenção de fazer. E até tinha. Não era nenhum plano, bastava que saísse de lá e na rua nunca mais ninguém me apanhava. Afinal tanta corrida não é só bom para a celulite.
Mas não. Quando dei por mim estava dentro de um táxi com o estofo cortado e que me arranhava a curva das pernas. Não sei porque me lembro tão bem daquele golpe, mas lembro-me, gigantescamente, quase a querer engolir-me.
A minha Mãe enfiou-me na cama, um copo de leite, mais uma dose de pastilhas, bolachinhas, roupa ajeitada. Depois trouxe-me o portátil, disse para ver se os meus amigos me tinham escrito.
Que amigos, Mãe?
Os poucos que eu pensava serem mesmo de mim, de cá de dentro, onde estão?
E ele?
Que é feito dele? Apareceu um dia como uma miragem, quase um castigo a condenar-me a avivar no peito o que todos os dias penso em matar.
Só o Magalhães. Só o meu Chefe de Equipa se lembrou. O homem que eu repudiei quando disse que só quería ajudar-me.
A vida é macabra.

sábado

Começo a sentir-me inquieta, mais presa que nunca, mais impaciente, a perder o controle de fazer de conta que.
Afinal quando é que me vou embora?
Não aguento mais! Nem o sitio, nem os comprimidos, nem a compaixão da minha Mãe, nem os sons abafados que ouço de vez em quando como se alguém tentasse expelir uma coisa qualquer de dentro e lhe tapassem a boca.
Acho que tenho medo... Medo de me esquecer de mim.

sexta-feira

- Então? Como se sente? Está com óptimo aspecto!
- Deixe-se disso. É simpático da sua parte Magalhães, mas eu tenho um espelho.
- Ora?! É a verdade!
- A verdade é que quase me ía acabando aqui, isso sim...
- AH! Que humor!
(Olho-o. Ele é bem capaz de me ajudar... será?)
- Como vão as coisas lá pelo escritório?
- Nem quero que pense nisso! Está tudo bem!
- Se me diz...
- Afirmo! Quando estiver a 100% vai poder comprovar.
(Ele é que é a pessoa certa para me trazer as chaves do carro, de casa... será?)
- E os clientes?
- Vá, vá, deixe-se dessas coisas! Sabe que não se deve preocupar! Pense em coisas... sei lá! Pense nas suas viagens que tanto gosta!
- Se não tiver clientes satisfeitos não tenho dinheiro para fazer viagens, logo fico insatisfeita.
(Ri-se)
- Já tenho de volta a Edna, graças a Deus...
- Graças a mim. Ou pensa que esse senhor me ajudou quando estava em baixo?!
- Claro que sim! Ele olha pelos desvalidos!
- Poupe-se. Não vou nessa conversa dos pastorinhos e do rebanho.
(Acho que me enganei... Ainda ía contar à minha Mãe...)
- Eu rezei por si Edna. Para que se restabelecesse bem e depressa desse...
- Desse?
- Desse contratempo, quero dizer...
- Magalhães, você sabe o que é que aconteceu?
(Não diz nada, nem olha para mim, só aperta as mãos uma na outra)
- Sabe, não sabe? Vejo pelo seu constrangimento que sabe... e deve ter sido uma coisa linda!
- Não foi nada, foi até muito triste.
- Fale-me, eu preciso de saber. Tenho direito a saber!
- Mas para quê?! Já lá vai! Deixe isso, esqueça!
- Se é meu amigo tem de me contar!
- Amigo? Eu quero-lhe muito bem Edna, mas não vejo razão para falarmos de alguma coisa menos boa que até pode atrasar a sua cura...
(Não posso mesmo contar com este.)
- Se sabe porque não me diz? Não acha importante eu ficar a saber o que me aconteceu?
- Se insiste, sim, claro que sim. Se quer saber nem você sería a Edna se não o quisesse. Mas não aqui, não agora... Entenda-me, não é o momento oportuno.
- Quando?
- Quando saír falaremos.
- Prometa!
- Prometo-lhe que lhe conto tudo, que respondo a todas as suas perguntas, tudo, tudo.
- Magalhães, onde é que está o meu carro?

quinta-feira

O primeiro impulso é o mais verdadeiro, o mais puro, o mais bárbaro e geralmente aquele que nos deita a perder.
E o primeiro impulso que tive depois de saber da minha prisão/dependência da minha Mãe foi partir tudo o que há neste quarto, atacar os enfermeiros e nunca mais olhar a cara da minha progenitora.
Provavelmente se não fossem estas as condições do meu cativeiro tê-lo-ía feito. Mas aqui e agora não dá para perder a cabeça nem fazer nada que me comprometa a saída à vista. Tenho tempo de pôr os pontos nos iis. Neste momento o importante é que eu consiga saír daqui, destes malditos comprimidos que me vigiam a vontade como soldados e me impossibilitam de raciocinar claro e rápido, tudo em simultâneo. Demoro a focar-me em cada assunto. Até isto mesmo que escrevi escondi sob senhas que criei e agora, sinceramente, receio perdê-las por não conseguir segurar na memória nem muitas coisas nem coisas com algum tempo. E quando digo algum tempo é a véspera.
Mas também não me posso arriscar a ficar manietada em todos os meus passos e por enquanto, mal ou bem, lenta e desfocada, este é o meu escape, o meu túnel escavado dentro de mim.

quarta-feira

Depois de todas as sujeições a que fui posta à prova - as que me apercebo e aquelas de que não tenho memória (por enquanto, sei que me hei-de lembrar) - uma última provação.
Para que eu saia é preciso que a minha Mãe assine um termo de responsabilidade, uma garantia de que ficarei dependente dela e à guarda dela para o melhor e o pior.
Sou assim, considerada inimputável.
Sei assim que para ter chegado aqui já a minha Mãe se havía responsabilizado pela minha pessoa.
Não lhe perdoo.

terça-feira

Dentro de dias poderei saír, disse-me o rato de biblioteca. O compromisso sobre as sessões com o meu analista é ponto assente. Claro, tudo o que quiserem. Terei que seguir escrupulosamente a medicação que poderá ser ajustada por ele próprio. Com certeza. Alimentação, sono, passeios, nada de empresa, são fundamentais. Pois, pois.
Consegui lembrar-me das senhas de acesso ao mail do escritório. Devo confessar que fiquei surpreendida: tudo respondido a tempo e horas, novos contactos para potenciais clientes, parece que nem saí de lá... O Magalhães é mesmo um excelente profissional, confirma-se.
Preciso de começar a pensar em coisas práticas, as chaves do carro, de casa, marcar o cabeleireiro e a manicure, ah e também a depiladora, pareço um lenhador.
E depois de tudo isto fazer uma coisa que se impõe.
Ligar para ele a agradecer o cuidado e a preocupação que teve comigo, "tantas" foram as vezes em que veio visitar-me.

segunda-feira

Continuo a enfardar pilhas de comprimidos, obrigam-me a abrir a boca, mostrar por baixo da lingua, nas bochechas e depois dizem-me linda menina.
Sinto-me com mais força. Já me apercebi que é tudo uma questão de manobrar a coisa, jogo de cintura, fazer o que eles esperam de mim.
A minha Mãe sorriu-me, afagou-me o rosto, disse-me que eu estava com óptimo aspecto, que não tarda muito irei para casa. Para a casa dela, sublinhou, que eu preciso de alguém que tome conta de mim, me alimente que estou um pau, que cuide que eu durma para sossegar a cabeça.
Acenei afirmativamente a tudo.
Quantas mais vezes disser sim mais rápido saio daqui e nunca mais me agarram.
Perguntei-lhe se ele tinha estado cá ou se tinha sido apenas um sonho meu. Esteve, esteve sim e ficou muito preocupado. E voltou? Não, não aguentou ver-me daquela maneira, mas agora eu já estou muito melhor. Voltará, então? Ele tem a vida dele, é complicado vir aqui... percebo. É a preocupação comigo que o afasta daqui.

domingo

Hoje deixaram-me tomar banho sózinha se bem que o monstro ficou a assistir. Deve-lhe ter dado um gozo enorme. Vesti a minha roupa, deve ter sido a minha Mãe que a trouxe, mas nada disto combina.
Levaram-me a um gabinete onde estava uma fulana com cara de rato de biblioteca, um fatinho horrível, daqueles que são feitos em série.
Uma dra. qualquer coisa que não fixei o nome. Reparei que as paredes e a alcatifa são do mesmo género dos do consultório do pateta.
A mulher falou, falou, mas a partir de uma certa altura deixei de a ouvir. Retive algumas palavras: comoção, shock traumático emocional, falta de estima, fuga à realidade, incapacidade temporária para discernir o real do medo construído, blá, blá, blá.
Que estou melhor, embora mantenha a necessidade de vigilância médica.
Se estou melhor posso ir-me embora?
Ainda não, mais uns dias para ajuste da medicação. E trabalhar por agora, também não, a seu tempo, tenho muito tempo.
Quem é que esta gaja pensa que é?
Deve pensar que eu também sou uma assalariada e que vivo daquilo que o patrão me dá quer trabalhe ou não!
Deixa. Deixa-a pensar que manda. Eu já lhe digo.

sábado

Parece que flutuo, os pés não tocam no chão. Vejo imagens que preciso de focar para me aperceber com nitidez a quem pertencem. Mas passado um pouco, tudo parece ficar mais claro.
Trouxeram-me o portátil, nem sei que dia é hoje, perguntei e vejo que já passaram muitos dias desde a última vez que aqui escrevi.
Pedi um espelho. Estou horrível. Envelheci séculos. Tenho a pele baça e umas olheiras cinzentas que parecem uns óculos. Fizeram-me um rabo de cavalo mas puxaram-me tanto o cabelo que mo devem ter arruinado. Preciso de saír daqui e tratar de mim, voltar à minha vida, à minha empresa, à minha casa. Estou um pouco confusa, mas se me concentrar consigo arrumar as idéias e organizar-me.
O escritório deve estar de pantanas, clientes perdidos, aquilo não anda sem mim, deve ser um regabofe com a patroa fora.
A patroa maluquinha... Que raio de coisa é que me aconteceu para eu vir parar aqui... só há gente completamente desgovernada, louca, eu não sou louca, nunca fui.
Estou cansada e tonta e até um pouco enjoada.

segunda-feira

Não sei o que se passou... vieram desamarrar-me da cama, tinha os pulsos atados às travessas da cama.
A minha Mãe fartou-se de chorar.

domingo

Mas que raio de sitio é este onde estou?
Só vejo é atrasados mentais!
Não faço outra coisa senão estar na cama, jardim, obrigam-me a ver televisão e querem dar-me banho como se eu fosse um boneco.
Quero-me ir embora, não me podem ter aqui contra a minha vontade!

sexta-feira

Apareceu a minha Mãe, o Magalhães e mais tarde o meu analista.
O Magalhães disse para não me preocupar que vai tudo bem e o pessoal do escritório manda as melhoras e saudades. Não acredito. Não me gramam. Só precisam que eu lhes pague, nada mais.
O parvalhão do analista veio com a conversa de sempre, como estamos, estamos na merda. O aftershave dele dá-me um embrulho no estomago, cheira mal, é uma mistura de cheiro de cinzeiro com limão ou lavanda, não sei bem. Disse que depois de um período de adaptação o meu organismo estava a responder muito bem ao tratamento e que em breve, esta sensação de cortiça que tenho na boca vai passar.

quinta-feira

Vieram cortar-me as unhas outra vez. Deram-me cabo da minhas unhas, parece que tenho umas batatas nos dedos. E também levam todo o dia a picar-me os braços. Drogam-me. Não quero mas não tenho forças para os empurrar.
Quero ir embora.
Quando a minha Mãe chegar vou pedir-lhe que me leve.

quarta-feira

Hoje trouxeram-me para o jardim.
Tanta luz, tanta cor, o verde é tão verde.
Pedi o portátil mas a enfermeira, uma mulher gorda com uns braços que parecem umas pernas de um lutador de sumo não saíu do meu lado, sempre a ver o que eu lía, o que eu escrevía.
Não consigo aceder ao mail da empresa, não me recordo das senhas e demoro imenso tempo a carrgar nas teclas. Tudo parece desenvolver-se a uma velocidade diferente daquela que tenho vontade, da que as minhas mãos pretendem executar mas lentas, muito lentas parecem não me pertencer.
Tenho a língua áspera, os lábios secos e gretados e ardem-me.
Não sei se estou a sonhar ou se estou em tempo real, a dimensão das coisas alterou-se e vejo com alguma dificuldade, tudo parece ondulado como se tivesse sido atingido por um calor imenso.

sexta-feira

Não veio mais.
Talvez eu tenha sonhado e ele nunca tenha estado aqui.
Estou sempre com sono, muito sono.

segunda-feira

Hoje quando ele chegar não me vai apanhar naquela moleza toda em que tenho estado.
Não tomei os comprimidos, encostei-os entre os dentes e a bochecha mas não os engoli.
Hoje hei-de vê-lo mesmo, falar com ele, dizer-lhe a falta que me fez, o quanto me senti perdida e desejei morrer.

domingo

Hoje a minha Mãe veio com ele. Há tanto tempo que não o vía. Continua belo, belo, belo.
A minha Mãe saíu e ele sentou-se na beirinha da cama, ajeitou-me o cabelo na testa, atrás da orelha, aquele gesto tão dele. Depois segurou-me na mão e passou-ma na barba rente por fazer. Repetiu este gesto muitas vezes, tantas que comecei a sentir as costas da mão a ficarem dormentes. Olhou para mim e começou a chorar. A chorar sem parar, muito, sem som, só as lágrimas a saírem como se tivesse aberto uma torneira e não conseguisse parar aquela água toda.
Puxei-o para mim, a cabeça sobre o meu peito, molhou-me a camisa de noite, a mão, a dobra do lençol, não paráva de chorar, não falava nem fazía ruído algum, só chorava e chorava sempre.
Deu-me um beijo na testa e eu roubei-lhe um dos lábios. Tinha a boca salgada.
Pedi-lhe para voltar amanhã.
Ele limpou os olhos vermelhos ao punho da camisa, fungou e foi-se embora.

sábado

Não faço a minima idéia que dia é hoje. Nem há quanto tempo estou aqui. Tenho umas imagens que chegam e partem, nada de concreto... A minha língua está como uma cortiça, permanentemente seca, áspera, por vezes sinto-a tão grande que acho que não me cabe na boca...
Trouxeram-me o portátil. Sei que não foi hoje. Mas tenho feito um esforço danado para me lembrar das senhas para entrar aqui e escrever alguma coisa.
Alguma coisa... mas o quê?
Estas patacoadas da lingua e do calendário. Também não estou para mais.
Ouço a voz da minha Mãe, deve vir lá.