quinta-feira

Não visito a minha mãe amiúde.
Não vale a pena, quanto mais as visitas mais a possibilidade de me aborrecer e, facto consumado, nunca estaremos de acordo em coisa alguma.
Mas sinto-me impelida a ir lá a casa, olhá-la, sentir os cheiros que são sempre certos, sempre os mesmos, o relógio de parede a fazer aquele tic-tac que dá para compormos musica no silêncio, as fotografias na sala de estar.
Nada muda de lugar, sempre conheci as mesmas coisas nos mesmos sitios e até de olhos fechados sei o conteúdo de cada uma das gavetas, as almofadinhas de crochet cheias de alfazema, a caixa com botões, a velha lata de pó de talco.
É incompreensível que conhecendo eu os seus rituais e a sua forma de estar ainda continue a responder-lhe às suas provocações veladas quanto ao meu estilo de vida, às suas manifestações de desagrado pela escassez de visitas que lhe faço, aos seus lamentos de não ter descendência minha.
- A filha da vizinha do r/c já teve bébé.
(Lá vamos nós).
- Hum... não sei quem é.
- Sabes sim, a Teresinha!
- Sei lá quem é a Teresinha!
(A Teresa, a gorda da Teresa que fazía bicos ao namorado nas escadas do prédio quando este a vinha trazer a casa.)
- A Teresinha, Edna! Aquela muito bonitinha, assim um bocadinho cheia, lourinha, a filha da vizinha Matilde! Não te lembras?
(Então não me lembro?! Quando a surpreendi com a boca na botija, borrou-se de medo que eu fosse contar à mãe Matilde!)
- Teve muita sorte. Arranjou um belo marido! Aquele rapaz com quem namorou muito tempo, lembras-te? Vinha sempre trazê-la a casa...
(Ah, pois vinha! Já sabía o consolo que o esperava!)
- Não estou mesmo a ver Mãe. Sabes que não ligo muito à vizinhança e já saí daqui há bastante tempo...
- Sim, para viveres sózinha. Nunca percebi... Não estavas bem aqui comigo?
- Não vamos começar, peço-te. Vim visitar-te, saber se estás bem... nem sequer me posso demorar...
- Vens sempre à pressa. Visita de médico! A Teresinha vem todos os dias ver a vizinha Matilde!
(Oh! Não! Esta agora?! Comparar-me com aquela gorda?)
- Já vi que estás bem, como sempre. Vou-me embora.
- Quase mais valia nem teres vindo!
- Venho pouco, é verdade. E tu consegues sempre fazer com que perca a vontade de aqui estar muito tempo... e se achas que não vale a pena... Como queiras.
- Que queres dizer com isso?
- O que entendeste. Ou que queiras entender. Percebes sempre as coisas à tua maneira, hoje não será diferente.
Senti o fiozinho de sangue a começar a aquecer-me o lábio.
- Pronto, pronto... anda cá rapariga, estás a sangrar. Nunca te curaste disto.
Sentei-me no banco da cozinha, costas apoiadas nos azulejos frios. Senti a mão quente da minha Mãe a tocar-me no rosto, o algodão macio a estancar-me o sangue, ela a ajeitar-me para a sua barriga, o pano da bata com aquele cheirinho de sabão, a lavado.
Olhei-a de baixo para cima. A minha Mãe é mesmo bonita.

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