quarta-feira

A porta fechou-se. À chave. E de vez.

terça-feira

- Entra, entra. Fecha a porta.
- Aqui?
- Não, vamos para o sofá. Afinal isto não é nenhuma conversa de negócios.
- Só não percebo porquê aqui. Em tua casa não tería sido melhor?
- Não. Isso traría memórias que ambos sabemos não nos faría bem.
- E aqui faz bem?
- Faz menos mal. Pelo menos evitamos a tentação de nos agarrarmos...
- Eu tenho uma coisa para te dizer...
- Eu sei.
- Não penses que é fácil...
- Queres beber alguma coisa? Um café, uma água...
- Não, estou bem assim.
- Eu quero. Um capuccino. Espera, vou pedir...
- Como eu ía dizendo...
- Tens uma coisa para me contar. Conta.
- Eu vou casar.
- Eu sei.
- Sabes?
- Sei. Já sei há bastante tempo. Mesmo antes de me ter dado o treco.
- Como soubeste? Quase ninguém sabe...
- Ora! Que interessa isso? Vais casar e ponto. Mudaría se te dissesse como soube? Deixarías de casar se te contasse como chegou até mim?
- Não. De forma nenhuma.
- Então?! Vês como não interessa? Mas o que é importante é que falemos antes desse teu casamento.
- Falas de uma maneira...
- Devías conhecer-me. Como deves calcular não te desejo felicidade nenhuma.
- Incrível! Como podes tu...
- Ah! Espera! Não te esqueças do que vais dizer... o meu capuccino! Obrigado. Feche a porta quando saír.
- Como é possível seres tão fria?
- Não sou fria, sou eu mesma. Como sempre me conheceste. Como me amaste.
- E como deixei de te amar. Nunca quiseste estar no todo comigo. Havía sempre qualquer coisa que te travava... primeiro pensei que o mal era meu, que eu não te demonstrava o quanto te quería...
- Não, o problema nunca foi contigo. Eu é que sou assim. E não mudo. Mas amei-te. Foi a primeira vez que amei alguém. Acho que me assustei...
- Conversas! O amor não assusta!
- Pois a mim deu-me um medo enorme. Perder-me de mim, ficar dependente de ti, daquilo que eras, sujeita à quantidade de amor que me quisesses dar... E depois? No futuro? Como sería? Tería que te mendigar que me quisesses? Que ainda gostasses de mim? Pedir por favor?
- Não, não! Quando duas pessoas gostam mesmo, profundamente, não é assim que funciona! Tudo acontece naturalmente. E não é hoje gostar e amanhã já não gosto!
- Mas foi isso que aconteceu. Vais casar. Estás a dar-me razão.
- Mais de um ano depois de nos termos separado. Amei-te ainda por muito tempo, mas não estou morto. Nem o meu coração. Não há como dar ordens ao coração. Simplesmente acontece...
- Pois acontece. Eu também deixei de te amar... Caricato, não é?
- Como assim?
- Amamos tanto, tanto uma pessoa, achamos que é para sempre, amedrontamo-nos só com a idéia da perda, mesmo que seja numa noite má de pesadelos e afinal... acontece mesmo. Não é um sonho que se tenta esquecer. É uma glória condenada.
- Que vais fazer da tua vida?
- Vivê-la.
- Gostava de saber que não me queres mal...
- Não te quero bem, já to disse. A diferença que fazía de ti para os outros homens que se deitaram comigo e se confessaram apaixonados é nenhuma. Ou por outra, há uma diferença, sim... Tu foste o único a ficar até o dia nascer e a trazer-me o pequeno-almoço à cama.
- É só isso que fica?
- Nem isso fica. Por agora ainda lembro nitidamente. Mas daqui a algum tempo esqueço, cada vez hão-de ser mais raras as vezes que o lembrarei até se apagar por completo. E contigo há-de acontecer o mesmo. Ainda mais casado. De cabresto posto. Tudo dominado. Serás vulgar...
- Soa-me a despeito, Edna.
- Despeito? Não me faças rir! Porque me foste ver à Clinica?
- Tive medo que morresses...
- Poupa-me.
- É verdade. Não voltei porque não aguentei ver-te daquela maneira... Parecías... Sei lá, parecías... Uma flor a quem se tinham esquecido de dar água. Murchavas. Mas tão lentamente e ao mesmo tempo tão visivelmente que fazía doer ver as dores que te mirravam... Nunca o hei-de esquecer. Eu nunca te vou esquecer, Edna.
- Vais sim.
- Estás a sangrar... estás contrariada. Deixa limpar-te o nariz...
- Não. Não ía aguentar que me tocasses. Já me curei da tua pele, não quero sentir outra vez!
- Não mudas... vou-me embora com um peso no peito. Que te aconteça uma coisa muito triste...
- Que coisa? Não sejas tonto! O máximo que me pode acontecer é morrer mas isso acontece a todos, não é? Bom! Acho que falámos tudo. Agora vai-te embora.
- Não saio daqui sem ter a certeza de que estás bem comigo. É importante que fiques bem comigo.
- Vai. Está na hora...
- Dás-me um abraço?
- Fecha a porta quando saíres.

segunda-feira

Falemos de mim. Falemos o quanto é preciso falar de mim. Eu de mim. Sem me ralar com notas, ressalvas à margem, olhares indiscretos e masturbações mentais.
Talvez devesse começar por falar dele.
Não foi ele que me trouxe até esta sala amarela que por força o analista fala em creme. Daltonismo. Das idéias, sobretudo. Afinal, para se ter um canudo nem sequer é preciso ser inteligente, e este é um dos melhores exemplares dessa regra de excepções.
Eu sou a excepção da excepção.
Sabía no meu intimo que um dia a corda se partía mas sempre fui esticando mais um bocadinho, enchendo o meu saco do lixo à medida do amor que lhe tomei.
Eu também me assustei. Nunca quis amar. Achava isso apanágio de pessoas fracas e sem controle na sua vida. Nunca quis nem quero perder as rédeas da minha. Mas parece que de tanto as evitar acabei enredada e com nós, presa por um pé e de arrasto pela vida fora.
Não estava preparada para sentir amor. E ele não estava preparado para que a entrega tivesse condicionantes.
Não o amo. Não o amo mais.
Senti isso ontem, quando senti frio depois do jacto de água gelada que o Magalhães me obrigou a suportar dentro da cabine do duche. Senti que com a água se ía o amor. Se ía ele. Ou já tinha ido quando ele me deixou. Só não sabía.
Hoje a lucidez depois do alcool.
O alcool do amor, é bonito de se dizer.
Falemos de mim, então.
Do que fui. Do que perdi. Do que estou prestes a ganhar.
Não, não vou dizer o que é.

domingo

- Edna... Edna...
- Hum...
- Edna... Acorde, abra os olhos.
- Hum... Você...
- Acorde, tem de se levantar.
- Não...
- Sim, tem de se levantar. Está toda suja, cheira mal.
- Hum...
- Arranjou-a bonita!
- Vá-se embora...
- Outra vez? Cada vez que me vê só me sabe dizer isso?
- Você não existe... é só na minha cabeça... embora, rua...
- Garanto-lhe que existo. Ora quer ver?
- AI!
- Está a ver como uma boa palmada no rabo a desperta para a realidade?
- Estúpido.
- É você! Sua bebeda! Agora deu-lhe para isto?
- Rua...
- Levante-se ou vai à força!
- Não!
- Vai sim e é já!

sábado

A cabeça estala-me.
Estou enjoada.
Ontem saí. Apanhei uma bebedeira de caixão à cova. Não me recordo como cheguei a casa, se fui eu que trouxe o carro ou se alguém me veio trazer. Mas devo ter sido eu. Estou sózinha, não está cá mais ninguém. Pelo menos na minha cama. Se vomitasse ficava melhor... mas só de pensar em levantar-me, andar e dobrar-me dá-me náuseas e pregos na cabeça.
Não tenho noção de ter bebido tanto que me tivesse deixado neste estado...
Acho que não consigo continuar a escrever... a luz do pc dá-me tonturas.
Vou vomitar.

sexta-feira

Que semana longa, esta.
Estou arrasada. E quanto mais cansada menos tenho dormido. A cabeça atormenta-me entre coisas do passado e outras do presente, baralha-se, adormeço e desperto com o coração disparado e suada.
Nem sequer posso ir para o quarto das visitas que aquilo está encalhado: nem pronto e frio como dantes, nem renovado, que deixei o projecto interrompido e a mobilia está amontoada.
Só abro a porta e vem aquele halo gelado de quem nunca ali viveu. Arrepio-me. Volto para o meu quarto mas não consigo nenhuma posição confortável que me embale e me leve no sono.
Hoje quando daqui saír vou dar um giro, ver gente, ouvir ruídos diferentes dos dos dedos a baterem à minha porta do gabinete, ou o som do telefone que não é atendido.
Preciso de tomar vida, beber vida, ver agitação de quem ri e fala e flirta.
E depois talvez, descanse. Talvez. Na minha casa vazia.

quinta-feira

A minha realidade é esta: sobreviver o melhor possível com a falta do meu chefe de equipa até encontrar alguém que ocupe o seu lugar. Apenas o lugar, porque a nível de competências, conhecer as jogadas de bastidores, os meandros das rivalidades no negócio e o sentido de oportunidade só mesmo ele. O Magalhães.
O escritório está barulhento como nunca esteve. Batem à minha porta por tudo e por nada e embora conheça bem com quem trabalho, apercebo-me de uma série de pequeninas coisas que simplesmente não chegavam à minha sala porque o Magalhães barrava-as e tratava delas. Desde a encomenda para o papel higiénico à máquina do café avariada, do cliente que telefonou a dizer que chega uma hora mais tarde e coincide com a hora marcada de outro aos amuos públicos do Daniel e da Paula tudo acontece.
O Magalhães dava a volta a isto tudo. Faz-me falta. Mas não me faz falta alguém que não saiba o seu lugar e aqui quem manda sou eu.
É verdade que fiquei desconcertada com a reacção dele quando o beijei.
Não esperava... Aliás, sempre achei que ele tinha um fraquinho por mim e só não se aventurava mais porque eu tinha a porta fechada. Depois aquela cena todas das flores do admirador secreto. Ainda mais me deixou convencida. Já para não falar da sua permanente presença durante este tempo todo que estive ausente daqui. Os seus cuidados. O chocolate negro. A sua permanente paciência para me esperar.
Estava eu preocupada como iría ser... agora está resolvido.

quarta-feira

Falemos de mim então. Da minha especial habilidade para afastar de vez aqueles de quem mais gosto. Os poucos, poucos de quem gosto realmente e se vão da minha vida porque enquanto não corro com eles parece que não descanso.
Depois sofro. Mais. Mas não sinto arrependimento. Não me acho a alavanca que pôs em marcha este mecanismo que cuspiu duas pessoas que se querem afastadas como dois pontos no Universo.
Falemos de mim, como quiserem falar de mim.
Hoje sinto-me como um não me importo.
Nada tem importância, até o meu saco de repente minguou e mirraram os braços que por lá se misturam, subnutridos de um amor que não me dou, que não me chega e que também repudio.
Amar é violentar. É acabar com o outro.
Ele acabou comigo.
E só hoje me dou conta que já morri.

terça-feira

- Entre e feche a porta.
- Passa-se alguma coisa?
- Sabe quem manda aqui?
- Isso tem resposta?
- Mais do que saber a resposta é importante que o interiorize.
- Não estou a perceber...
- É bom que não esqueça, nunca, que fui que criei esta empresa e sou eu que mando nela. Sem direito a intervenções de mais ninguém a não ser a minha vontade.
- Continuo sem perceber.
- O que eu quero dizer é que o que se passou, é passado. Não tem qualquer interferência no que se passará. Ou no que voltou a ser desde ontem. E nem mesmo o facto de você Magalhães me ter ajudado terá qualquer vantagem sobre a direcção da empresa. Você é o Chefe de Equipa e ponto.
- Porque será que as sua palavras me cheiram a ameaça?
- São um aviso, não uma ameaça. Só para o caso de você achar que as coisas mudaram lá porque me viu virada do avesso.
- Ou será que isto é uma vingançazinha por causa do que se passou? Ou do que acabou por não se passar?
- Que estupidez! Não misture as coisas!
- Desculpe! Você é que está a misturar as coisas!
- Ridiculo! Ridiculo!
- A grande dama de ferro estica o seu braço e castiga o empregado! Lindo... Só porque ele não estava à disposição dela como os outros...
- Tenha cuidado com o que diz! É bem capaz de se arrepender amargamente!
- Amarga! É isso que você é! Que pensa? Que estou rendido aos seus encnatos? Bastava um beijo e zás! Eu caía redondo! Deve andar com muita fominha!
- Calhordas!
- Ressabiada!
- Seu cabrão impotente!
- Frigida!
- Saia! Saia e feche a porta! Arrume as suas coisas e ponha-se na alheta! Está despedido!
- Até que enfim! Eu saio. Até me faz um favor... está preparada para pagar? Ou pensa que isto fica resolvido com os seus gritos? Tenha paciência, mas a sua cara não me mete medo.
- Saia. Feche a porta quando saír.
- Eu fecho. Fique aí, sózinha, a brincar aos patrões. Mas sózinha! Como sempre! Ciao!

segunda-feira

Não dormi uma hora sequer. Estou pronta há séculos, à espera do Magalhães. Estou nervosa. Hoje ocupo o meu lugar. Hoje penso no que aconteceu ontem. Levei a noite inteira a pensar no que aconteceu ontem.
Depois daquela palhaçada da lagosta e do Magalhães desatámos a rir. Mas a rir tanto que parecíamos dois dementes, sem contenção, sem tino algum, risos nervosos, quase histéricos, uma coisa absurda que nos tomou a cabeça e o corpo.
E de repente senti um fogo a queimar-me desde os pés até à raiz dos cabelos, parecía que o meu cabelo suava, destilava por aquele homem que se dobrava à minha frente em convulsões de riso incontrolável.
Agarrei-lhe a cara e beijei-o.
Beijei-lhe os lábios com força, aos chupões, a meter a minha lingua dentro da boca dele, à volta da carne da boca, a revolver-lhe a boca e a sentir-lhe a lingua macia e ondulada e também os dentes e de novo os lábios e apeteceu-me comê-lo.
Mas só a boca. Muito a boca.
Ele agarrou-me nos pulsos, afastou-me, deu-me uma sacudidela.
- Páre com isso Edna. Não quero.
E saíu porta fora.

domingo

- Suba, a porta está aberta cá em cima. Depois feche-a, estou na sala.
(O Magalhães hoje aqui? Não me disse que vinha... se pensa que vai tentar persuadir-me de regressar ao escritório pode dar meia-volta que perde tempo e cuspo. Amanhã é o grande dia.)
- Bom dia!
- Bom dia Magalhães. A que se deve a honra deste inesperado?
- Pensei em fazer-lhe uma surpresa!
- Mau! Sabe o que penso de surpresas.
- Mas esta é uma boa surpresa, garanto-lhe!
- Desembuche.
- Vim fazer-lhe o almoço!
- O quê?
- O almoço! Que me diz de uma bela lagosta?
- Você está doido! Não tenho fome.
- Mas tem que comer! Está magérrima! Precisa de forças para voltar ao escritório!
- Não vai começar com a conversa de eu adiar o meu regresso, pois não?!
- Não, apenas lhe quero oferecer o almoço e como sei que não gosta dos Domingos...
- Quem lhe disse que não gosto dos Domingos?
- Sei lá, talvez você... que interessa? Bom, vamos para a cozinha!
- Nem pensar! Vá você!
- Mas preciso que me diga onde estão as coisas!
- Não faço a minima!
- Como?
- Não sei, não sei, quem sabe dessas coisas é a empregada!
- Bom... já vi que tenho que me virar sózinho.
- Não era melhor deixar-se disso? Telefona-se e vêm cá a casa trazer qualquer coisa...
- De maneira alguma! E a lagosta? Já viu a lagosta? Fresquissima!
- Não vi nem quero ver. Aliás, não percebo nada disso...
- Então, deixe-se estar. Eu já cá venho trazer-lhe uma água tónica com limão.
- Que coisa desenxabida...
- Não pode beber alcool! Com os comprimidos não pode beber alcool.
(Pois... o que tu não sabes é que eu deixei de tomar os comprimidos. Nunca mais, nunca mais)
- Edna! Você não me diga...
- O quê?
- Você parou a medicação?
( Sou maior e vacinada, não preciso de mentir.)
- Não pode fazer isso! Mesmo que diminuísse há um tempo de desmame! Por isso as mãos não param de lhe tremer! Inconsciente! Você é uma criança!
- Ah! Páre lá com o sermão! Era só o que me faltava!
- Sabe uma coisa? Apetece-me dar-lhe umas boas palmadas! Como se faz a uma criança desobediente! Desobediente e mal educada!
- Experimente...
- Não me tente!
- Está na minha casa!
- Pois não será isso que evitará eu dar-lhe um correctivo!
- Ponha-se na rua! Ninguém o chamou aqui! Rua! RUA! Você e a sua lagosta!
- Eu vou! Aliás nem devía ter vindo! Mal-agradecida! Mas a lagosta fica!
(Não sei explicar porquê... mas está a dar-me uma enorme vontade de rir...)
(E a ele também!)

sábado

Como ainda tremo bastante o Magalhães lá me convenceu que sería preferível aguardar mais algum tempo antes de eu poder conduzir sem perigos de maior. Isto porque apesar de ser Sábado, quero ir ao escritório, quero ver como está tudo, preparar a minha mesa para na Segunda ocupar o que é meu. Já chega de afastamento.
Ele vem buscar-me.
Não sei explicar bem porquê mas sinto-me nervosa.
Tenho as mãos a transpirar, coisa que nunca me aconteceu na vida. Já troquei de roupa três vezes e parece que nada me assenta nem é apropriado para um local de trabalho. Mas ao sábado.
A verdade é que estou mesmo muito magra e parece que as roupas vão deslizar por mim abaixo a qualquer momento. Perdi o rabo e o peito, os ossos aparecem bicudos nas dedos, nos ombros, nos joelhos e nos pulsos. Estou sem gracinha nenhuma. Se estivesse no activo não havería homem algum que me quisesse. Mas até o apetite por sexo desapareceu. A única vez que me masturbei desde esta cena toda não consegui chegar ao orgasmo, e acabei pior do que se não o tivesse tentado.
Agora só quero que o Magalhães chegue e me mostre os documentos da empresa.
Depois há-de levar-me até ao meu carro. Quero o meu carro na minha garagem de casa, perto de mim, disponível para a minha vontade, deixar de estar dependente de boleias e do meu Chefe de Equipa.
O Magalhães... outro problema. Não sei o que hei-de fazer daqui para a frente, como proceder com ele. Tem sido o que nunca ninguém foi comigo. Mas não quero um amigo a trabalhar comigo, um homem que sabe de segredos meus, que já me viu virada do avesso, descabelada e cheia de pelos nas pernas... um homem que não devería ter sido ele.
Devería ter sido aquele. O que não teve coragem para me ver deformada de tanto que o amo.
Ou amei?
Agora, neste instante, não sei...
Não sei o que sinto por ele, talvez saudades, vem-me à lembrança cenas que parecem saídas de um filme em que nós dois fomos os únicos actores e assim, os únicos protagonistas. Mas não deixa de ser um filme, nada de real, concreto, palpável, actual, presente quando precisei dele ao meu lado.
Quem esteve sempre ao meu lado foi o Magalhães e eu não o amo.
Nem quero misturar amor com gratidão.
Por isso, Magalhães... O que é que eu faço consigo?

sexta-feira

Naquele dia eu não fui eu. Eu fui mesmo eu com o meu saco do lixo totalmente escancarado, a chafurdar no sangue e a asfixiar-me entre os membros soltos e sem corpo que abundam dentro dele.
Disse-me o Magalhães que jorrei sangue pelo nariz, não um fiozinho como é hábito mas em golfadas. Temeram que eu tivesse feito um epistaxis e que fosse desta para melhor. Mas o verdadeiro circo veio a seguir, comigo a despir-me e a urrar e bater com os braços pelas paredes, na mobilia, um verdadeiro ataque de loucura. Foram precisos quatro homens para me segurar e mesmo assim debati-me, oferecendo pontapés como coices a quem tentava agarrar-me as pernas. Mordi o Magalhães, ferrei-lhe os dentes com força no ombro.
E depois perdi os sentidos.
Disse-me que estive muito tempo desacordada. Assustaram-se muito, só se lembraram da minha Mãe, desconhecíam se havería mais alguém a quem chamar.
Pois não havía. Não há. Sou sózinha por opção.
Quando morrer também vou sózinha.
Ou pensam vocês que levam chaperon?!

quinta-feira

- Sente-se Magalhães. Quer beber alguma coisa?
- Não, não.
- Porque está a sorrir assim?
- Por pouco achei que você ía terminar a frase com o seu habitual feche a porta...
- Ah! Aqui não, estamos na minha sala, não há portas.
- Eu sei... mas lembrei-me.
- Pois. Ouça. Quero falar consigo sobre uma coisa importante.
- O seu regresso ao escritório.
- Também. Mas antes de entrar no meu escritório preciso que me conte o que aconteceu naquele dia.
- Porquê isso? E agora? Já passou Edna!
- Só vai passar quando eu souber. Até eu saber será uma pergunta.
- Mas que adianta? É coisa do passado! Não pode voltar atrás!
- Mas posso aprender com o que aconteceu. O que é que aconteceu, Magalhães?
- Você ficou indisposta.
- Detalhes! Quero detalhes! Tudo! Tim-tim por tim-tim!
- Mas que coisa! Já nem me lembro bem!
- Essa não! Vamos! Eu não vou parar de perguntar e só o posso fazer a si, pois era você que estava no escritório e tudo se passou lá, no meu gabinete! Ou não foi?
- Foi...
- Como? Não o ouço!
- FOI!
- Então diga! O que é que eu fiz?
- Foi horrível...
- Eu aguento.
- Pois eu não sei como aguentei... e juro-lhe que não terei forças para algum dia voltar a vê-la naquela situação...

quarta-feira

Tempo de regressar. De me sentar na minha cadeira. De pedir para fechar a porta. De retomar a minha vida num ponto que perdi, algures, não tenho noção onde nem porquê. Esta é uma questão que tenho que esclarecer. Não posso prosseguir sem saber o que fiz. Ou pelo menos sem tomar as medidas necessárias para antever que possa voltar a acontecer e controlar, controlar-me, ter o dominio da situação. Comandar a minha vida. Sem interferência da minha Mãe, do Magalhães, de uma manada de médicos e uma pilha de comprimidos.

terça-feira

O Magalhães comportou-se à altura de um motorista profissional: abriu-me a porta, fechou-me a porta, suportou as apitadelas dos restantes condutores para me deixar à porta do cabeleireiro e esperou dentro do carro, pacientemente, horas. Sim, horas. Eu estava numa lástima. Mas quem tratou de mim soube renovar-me e quase, quase, me cheguei a sentir como a Edna de outros tempos.
Não fossem as tremuras que ao invés de abrandarem cada vez aumentam mais e tudo tería sido considerado como uma veneta de uma mulher excêntrica.
Acho que ficaram a pensar que me tornei uma viciada em risquinhos brancos...
O dinheiro cala tudo, compra tudo.
Bastou adivinharem a minha intenção de uma boa gorjeta para me passarem à frente de toda a gente e calarem a boca com algumas perguntas que dispararam mal entrei a porta.
Que mal vai este País de Portugueses!
Que mal que ganham os Portugueses e os levam a comportar-se como um bando de hienas esfomeadas pela disputa do meu pedaço de gratificação. Era ver quem mais se acotovelava para me prestar vassalagem. Ou ao meu dinheiro.
Acho que nunca me tinha apercebido desta realidade com tanta nitidez.

segunda-feira

Ganham-se pequenos hábitos com uma rapidez impressionante.
Dormi mal, tenho muitas dores de cabeça e ao longo da minha primeira noite de recuperada liberdade pus-me à escuta dos passos arrastados da minha Mãe quando se levantava, acendía a luz do corredor e me vinha espreitar e compôr a roupa de cama.
Nada disse aconteceu, são partidas da nossa cabeça.
Tomei um comprimido, agarrei-me ao telefone e marquei cabeleireiro, depiladora, manicure e pedicure. Só depois me lembrei que estou sem carro. Liguei para o Magalhães que entrou em pânico quando me ouviu. Em menos de um fósforo chegou.
- Mas que ideias são estas? Vá com calma!
- Eu vou. Mas depilada e de cabelo arranjado. Ou me traz o carro ou hoje está requisitado como motorista... escolha.
- Mas isto não é assim! E o escritório? Há reuniões importantes para hoje!
- Vá, não quero que falhe. Não se esqueça que o seu sucesso também para si reverte!
- Conversa! Diz isso depois de me desinquietar e fazer-me chegar aqui para ficar à sua disposição!
- Ouça. Eu estou com uma dor de cabeça infernal e não tenho disposição para discutir. Tenho horas marcadas no cabeleireiro, não posso continuar nesta figura!
- Mas que figura?
- Esta!!! A minha!
- Mas que cagança! Como se isso fosse importante!
- Já vi que me enganei a seu respeito! Não posso contar consigo!
- AH! Tardava! Vamos começar?
- Não vamos começar nada! Eu chamo um táxi! Está dispensado, pode ir. Mais tarde eu vou ao escritório!
- O quê? Mas que loucura é esta?
- Pode ir, não perca tempo!
- Sua doida... vamos lá, que eu levo-a.

domingo

O Magalhães tinha as chaves da minha casa. Abriu a porta da minha casa, sabía onde a mão podia encontrar os interruptores, o que significa que já cá esteve antes. O que significa que teve tempo mais que suficiente para vir cheirar por aqui o que lhe apeteceu.
A casa estava fria. Tudo arrumado, nos sitios que recordo, a minha escova de dentes à minha espera como se a tivesse usado pela manhã, as bisnagas dos cremes apertadas pela marca dos meus dedos, tudo, tudo, como se nada tivesse ficado interrompido.
O quarto de hóspedes está sem mobilia; primeiro achei estranho mas o Magalhães recordou-me os meus planos sobre a redecoração do quarto mesmo em vésperas de me dar o treco.
Trouxe-me um copo de água, abriu os cortinados e olhou para mim muito sério. Sentámo-nos. Perguntou-me o que eu quería fazer a partir de agora. Tomar um banho como deve ser. Sorriu. Ficámos não sei quanto tempo sem dizermos nada um ao outro. Depois olhou para as minhas mãos a tremer, agarrou-as e disse muito baixinho o que é que eu me tinha feito...
Foi nesse instante que senti o tempo parar, que me lembrei do meu saco de lixo, cheio, pesadissimo, tanta coisa para ver dentro dele, procurar, emparceirar membros, remexer e acertar todo o sangue que anda à solta à medida das veias que se perderam no fundo como cordas de um navio que se soltou do ancoradouro.
- Deite-se Edna, descanse. Eu falo com a sua Mãe, não se preocupe.

sábado

A vida não tem planos. O único objectivo que traça como gold é apenas a morte, de resto deixa tudo à toa. É por isso que os projectos que se fazem ao longo da vida, as determinações, as promessas vão para além dos 80% na taxa de insucesso de concretização. De uma forma ou doutra parece que a raça humana está condenada a desenhar um percurso de vida somente com o intuito de o falhar. É a modos que um jogar para nulos.
Por isso, quando saí do consultório e o Magalhaes me sorriu a perguntar se tinha corrido bem, todos os planos que eu havía feito se desmancharam naquele segundo: senti-me chegar a porto seguro. Nem sequer vou tentar explicar porquê. Só sei que o cenário que eu havía imaginado de me pôr a correr sem ninguém me conseguir deitar a mão pareceu-me a coisa mais burlesca que alguma vez me atravessara a cabeça e sinceramente, duvidei do meu juízo e se não teríam havido efectivas razões para me internar.
Ao invés de uma cena de filme comigo a correr para a liberdade, entreguei-me de novo nas mãos do meu carcereiro e pedi-lhe para irmos embora, entrei no carro e pedi-lhe um passeio por um jardim, passeámos e pedi-lhe para nos sentarmos a conversar, conversámos e eu simplesmente lhe disse que não voltava mais para a casa da minha Mãe. Assim. Sem gritos nem gestos dramáticos de braços. Ele escutou-me muito sério. Permanecemos depois calados por algum tempo. Caíu uma folha amarelada de um plátano em cima da minha cabeça, ele tirou-a, rodou o pé entre os dedos, depois entregou-ma na mão e disse "Está na altura Edna".

sexta-feira

Falemos de mim então.
De como tenho deixado a vida passar por baixo do meu nariz, eu a cheirá-la como se faz a um queijo que fede mas que é delicioso na boca.
Falemos de mim e como este idiota que me continua a sugar o dinheiro permanece nesta inactividade de apontar coisas sem nexo que propositadamente lhe passo para o enredar ainda mais no que ele já pode considerar de case study.
Falemos de mim enquanto lhe noto os olhos à socapa por cima dos óculos de metal demasiado grandes para a cara de fuínha a estudar-me, a avaliar da minha condição fisica, do meu decote na blusa negligée ao exibir um pouco além de pele, de como permanece naquela posição de lábio inferior sem qualquer determinação, mole, quase pendurado mostrando um bocado dos dentes. Deve ser péssimo a fazer sexo oral.
Tudo continua mais amarelento do que nunca.
Ouço-lhe a voz distante, penso no Magalhães que me aguarda lá fora. No que farei assim que saír deste sofá que o idiota virá cheirar e roçar-se aproveitando o quente do meu rabo e das minhas costas no intervalo entre pacientes.
Na liberdade que hoje recupero.
Ou morro.
Para casa da minha Mãe não volto.

quinta-feira

Continuo a esconder os comprimidos mágicos nos chinelos e a fazer do ralo a minha goela. As dores de cabeça não passam, nem as tremuras das mãos. Mas sinto de dia para dia, mais força dentro de mim, mais sangue, mais eu.
Em breve saio daqui pelo meu pé e a minha Mãe não vai ter condições de o evitar.
Depois, o mundo lá fora à minha espera. A minha vida. Pôr-me em forma. Acertar contas. Saber dele. Saber dele. Preciso de saber dele.

quarta-feira

- Então? Conte-me coisas!
- Conte-me você, eu estou aqui perdida nesta casa.
- Ora! Que coisa tão triste de se dizer!
- Pois é.
- Está com óptimo aspecto Edna!
- Você também Magalhães. Parece que a minha ausência lhe faz bem...
- Que quer dizer com isso?
- Está mais saído da casca.
- Mas que maneira de falar!
- É verdade. Até está mais interessante.
- Como assim?
- Mais interessante! Só isso!
- Não percebo...
- Deixe! Trouxe-me chocolates?
- Trouxe, claro que trouxe...
- Não devía. Daqui a nada estou gorda como uma porca.
- Como se isso fosse possível Edna! Que disparate!
- Conte-me do escritório, como vão as coisas.
- Tudo certo, tudo a andar!
- E o pessoal?
- Empenhados!
- E a Paula? E o Daniel?
- A que vem isso agora?
- Lembrei-me...
- Bom... eles... parece, não tenho a certeza, sabe que não ligo a mexericos...
- Separaram-se.
- Parece que sim...
- Eu bem lhe disse que isso ía acontecer.
- Ninguém podería saber que isso acontecería!
- Eu sabía. E disse-lho. E a eles também. Palhaços!
- Não consigo entender... Porquê essa raiva toda contra eles?
- Magalhães, você é divorciado não é?
- Que tem isso a ver com a Paula? E o Daniel?
- É fazer as contas Magalhães, é fazer as contas...

terça-feira

Dormi aos bocados, dói-me a cabeça, parece que tudo ecoa e ressoa dentro de mim. Não tomei mais nenhum comprimido, meti-os dentro dos chinelos de quarto e quando fui à casa de banho aproveitei para fazer o despejo pelo ralo do lavatório.
A minha Mãe continua no seu processo de vigilante, espreita para dentro do quarto, ouço-lhe os bicos dos pés à coca de me ver a fazer qualquer coisa desprevenida, de quando em vez senta-se na beira da cama e deita o rabinho do olho para o que tenho no portátil, faço questão de lhe mostrar o mahjong já com algumas pedras emparceiradas.
Depois regressa aos seus eternos afazeres, não sei bem quais, mas sei que não pára todo o dia, barulho de tachos, aspirador, gavetas a abrir e fechar, um inferno. Não entendo como alguém pode gostar desta vidinha de doméstica. De vez em quando troca algumas palavras com a vizinha, seja quando estende a roupa ou quando a outra vem pôr-se à porta a falar de mim.
Uma gosmas aquela vizinha! Tem uns pêlos encaracolados no queixo que só de os ver me irrita.
E é esta a minha vida agora.
Amarrada a uma cama a ouvir sons de mulheres que não sabem que são mulheres.

segunda-feira

Não tomo mais nenhum comprimido. Não quero chorar mais. Quero a minha vida conforme estava, quero-me a mim conforme EU era.
Odeio-me nesta dormência pendurada aos cuidados da minha Mãe e às visitas caridosas do Magalhães. Só posso contar comigo. Tenho de pensar o que vou fazer e a primeira coisa é ficar lúcida, saír deste torpor, deste estado de drogada que me põe a dormir e depois me desperta sem me lembrar o que aconteceu para trás.
Não tomo nem mais um comprimidozinho que seja!

domingo

Sinto-me desesperada.
Acho que nunca estive tão só. Acho que nunca tive tanta vontade de chorar como hoje.
O Magalhães não vem, a minha Mãe responde-me por monossílabos e eu afogo-me em comprimidos minúsculos que me põem num mundo gigante giratório.
Quero morrer mas estou demasiado cansada.

sábado

Conversa de caminho até casa, ontem:
- Se quiser venho buscá-la, podemos dar um passeio...
- Pelo jardim? Pela cidade?
- Por que não?! Se lhe apetecer! Estou por sua conta!
- Ai, que bom... Mas tenho que pedir-lhe uma coisa...
- Diga, diga, o que estiver ao meu alcance...
- Edna!
- Que foi Mãe? Estou a falar com o Magalhães!
- Eu conheço bem esse tom...
- Ora! Sabe o que é Magalhães?
- Diga.
- Não se esqueça das fraldas.
- Das fraldas? Não estou a perceber!
- Vá à merda! Acha que eu estou senil? Que sou uma reformada desdentada a quem se leva a passear ao fim de semana ao jardim?!
- Eu sabía!
- Tu não sabías nada Mãe! Tu não sabes de nada! Pare o carro Magalhães! Pare o carro ou juro que me atiro!
- Está doida?! Ainda temos um acidente! E largue o volante! Deixe!
- Edna! Ai, Deus nos acuda a todos e salve!
- Bem podes gritar pelo teu deus que eu não largo o volante! Pare o carro seu idiota!
- Vamos bater...
Lembro-me do berro da minha Mãe. Como aquilo me entrou no cérebro e me feriu como uma broca. Depois um silêncio. E ao mesmo tempo um zumbido. Tudo branco à minha volta. Sózinha. E de repente senti uma chapada na cara. Parecía uma coisa molhada e ao mesmo tempo a arder-me na face. Voltei a vê-los.
- Juro por Deus que se você voltar a fazer o que fez lhe dou um ensaio que nunca mais se esquece! Não me fico só pelo estalo!
Juro que não me lembro o que é que se passou para me pôr assim. Foi uma coisa que me cavalgou, trotou por cima de mim, espezinhou-me.
Mas agora vejo tudo tão mais nitido, mais limpo.

sexta-feira

O Magalhães apareceu, na condição de motorista, não me dão as chaves do meu carro e logo não sou senhora das minhas acções.
Hoje foi dia de saír, ir ao pateta alegre que pensa que me conhece.
Senti-me um pouco diminuída, sem maquilhagem, o cabelo amarrado num rabo de cavalo, as mãos que não param de tremer e sobretudo sem vontade alguma de estar presente adiante este estafermo que hoje pareceu rir-se desmesuradamente da minha figura.
Pensei que vindo, saíndo, talvez houvesse hipótese de me escapar a esta vigilância absurda que me fazem, mas não, não tive um segundo sem que a minha Mãe e o Magalhães como dois cães de fila me dessem uma folga que fosse, e cansada (sinto-me permanentemente cansada) também me faltaram o arrojo e as pernas.
Este amarelo-merda continua a escorrer pelas paredes. A dar-me vontade de lhe vomitar por cima dos joelhos, na alcatifa de má qualidade cheia de electricidade.
A conversa do costume, no plural, o nosso aspecto, como nos sentimos, o que queremos fazer, se temos dormido sem sobressaltos, se temos zumbidos, se temos muita sede, se temos vontade de fazer alguma coisa em especial.
Temos. Mas não dizemos. Só sorrimos. Talvez assim, sejamos tolinhos o suficiente para nos convencermos que estamos bem, benzinho mesmo, sem necessidade de mais drogas pela goela abaixo e nos deixem ir à nossa vida que se faz tarde.

quinta-feira

Estava recostada no peito dele, os braços à volta da minha barriga, o queixo dele apoiado sobre o alto da minha cabeça. Cada vez que ele falava sentía as articulações a baterem-me na cabeça, parecía que as palavras entravam mais depressa e mais nítidas dentro do meu cérebro, na minha compreensão e tudo à volta era claro e sem barulhos e calmo e tranquilo nas cores pastéis que nos rodeavam.
Senti-me bem. Senti-me tão bem. Quase a flutuar, a boiar, muita água para não sentir o peso do corpo, do coração, das palavras que ele me dizía sobre a cabeça e que me íam enchendo, enchendo, enchendo.
De repente senti-me a estourar, um balão cheio que precisa de deitar fora o excesso ou sai disparado no descontrole contra paredes e mobilia.
Acordei. Estava toda molhada. Os lençóis, o colchão, a camisa de dormir da minha Mãe de pequeninas flores rosa empapada até à altura da barriga.
Quis levantar-me mas não consegui. Parecía paralizada no meio da urina e do cheiro acre que se desprendía.
Chamei a minha Mãe. Ela veio. Lavou-me, vestiu-me outra camisa das suas e depois deitou-me na sua cama. Eu recostei-me no peito dela e ela contou-me uma história de soldados, tal como eu lhe pedía para me contar quando era menina.
As palavras dela, muito baixas, entraram dentro da minha cabeça, devagar, tão devagar que adormeci e não sonhei mais.