sábado

- Entre, feche a porta.
Está comigo desde a fundação da empresa, é focado, um óptimo profissional, tem um conceito inovador sobre o negócio e apesar de já estar no ramo muito antes de eu entrar nele não se deixou levar por vicios nem por encostos, é leal, não traz assuntos privados para a mesa de trabalho.
- Temos dois assuntos importantes para conversar.
- Falemos.
Olha-me nos olhos. Não sei muito dele para além destas paredes, é divorciado, tem um filho, não lhe conheço outras mulheres de roda dele, desconheço-lhe os interesses particulares para além do gosto pelas viagens. Solitário.
- O assunto do Daniel com a Paula mantém-se. Apesar de eu já ter falado com ela. Continua a descer o seu interesse pelo projecto.
- Está apaixonada.
- Eu quería que ela tivesse esssa paixão pelo projecto. Tanto se me dá como se me deu se o é pelo Daniel, mas não aqui! Está a perturbar o ritmo de trabalho e agora começa a alterar também o de outros!
- Quer que eu fale com ela?
- Não, eu já falei. Acho que temos de tomar outras medidas.
- Quais?
- Provavelmente dispensá-la. Um elemento assim não traz mais valia ao projecto e até atrapalha.
- Está a falar em despedi-la?
- Que me diz?
- Derradeiro...
- Eficaz, Magalhães, muito eficaz.
- Deixe-me falar com ela... Sei que já o fez, mas talvez ela tenha entendido que se tratava de uma conversa de mulheres.
- Desatou a chorar! Aqui, nessa mesma cadeira onde você está sentado!
- Deixe-me falar com ela. E mande-a de férias antecipadamente. O afastamento pode trazer algum beneficio ou pelo menos deixa de ser um elemento perturbador.
- Muito bem, faça o que tem de ser feito. Se a questão persistir no regresso dela, terei mesmo de a despedir.
- E o outro assunto?
- Férias, as minhas. Preciso de me ausentar por uma semana e quería que ficasse a tomar conta disto. Sei que não é a primeira vez que vou de férias mas nunca tivémos tanto trabalho entre mãos...
- Problemas?
Ficámos numa fracção de segundo a olhar um para o outro, um contacto eléctrico, uma tensão como aquelas que sentimos no pescoço antes da trovoada aparecer. Reparei na sua pele bronzeada em contraste com o cabelo prateado, não é um homem bonito mas é atraente e tem umas mãos que parecem falar.
- Alguns... nada de mais, tudo se resolve. Apenas preciso de saír, arejar, tomar decisões.
- Arriscaría dizer-lhe que são coisas que arrasta... e que agora tem de pôr um ponto final. Mas sei como não gosta nada de falar de si e de misturar trabalho e vida pessoal. Por isso só lhe posso dizer que pode ir, que eu tomo conta do leme. E uma semana passa depressa...
- Porque me diz isso Magalhães?
- Sinto-a agitada. E no entanto, contida...
- Porque diz isso?
- Se quiser falar eu estou à sua disposição. Sabe que a admiro, Edna.
- Não há nada para falar Magalhães, preciso de férias, apenas isso.
Ele levanta-se, fecha a agenda suavemente, ouço o click do fecho metálico, suspira longamente, olha-me e depois sai, deixa a porta aberta.
Será que estou a ficar transparente?

sexta-feira

Falemos de mim, então.
Do que forçosamente terei de falar um dia embora ache que é um desperdicio comentar o resolvido.
Falemos de mim e dele e de como tudo começou. De como nos conhecemos, embirrámos profundamente um com o outro. De como numa atitude de raiva lhe explodi na cara uma tabefe que lhe deixou as marcas e de como ele silencioso me virou e açoitou afirmando que eu era uma menina mimada que precisava de umas lições.
Falemos da minha surpresa da sua atitude e de como não tive nem tempo nem acto de reacção e me deixei dominar sem pensar em mais nada a não ser na dor fisica das palmatoadas. Naquele instante parecía que todo o mundo se constituía dessa dor, não havía raciocinio lógico, era um puro causa-efeito.
Falemos de como fiquei focada no ardor das nádegas, como o odiei e como saltei para cima dele para o atingir com tudo o que tinha no meu corpo: mãos, pés, dentes, um bicho incontido e incontrolável. Ele segurou-me os pulsos e afastou o meu corpo do dele, olhou-me profundamente.
O rabo ardía-me, muito, muito.
E desatei a chorar. Uma mulher feita a chorar como uma madalena arrependida, ranho e cuspo, convulsões do corpo.
A dor abrandou, silenciei-me. Foi aí que ele me abraçou e ficou calado a ajeitar-me o cabelo.

quinta-feira

Amarelo.
Amarelo-banana. Uma coisa desmaiada como um vómito de um bébé. Nada de surpreendente ou arrojado, tudo muito seguro, aposto que vai falar da cor como calma.
- Então? Menos perturbada agora com este creme?
(CREME?!)
- Acho-o tranquilo... calmo...
(Que previsivel!)
- Pronto! Agora já não se pode queixar da perturbação que as paredes lhe davam!
- Nunca me queixei, apesar de serem horrendas.
- Ok... Vamos começar?
Agito a perna traçada, balanço o sapato de verniz preto de salto muito fino. Gosto destes sapatos, fazem-me sentir fatal, hoje apetece-me arrasá-lo por ser tão pouco, por se achar tanto só por ter um consultório e um par de ouvidos como penicos que recolhem toda a espécie de merda que os pacientes despejam, por ter porta-retratos de familias felizes enquanto tem erecções com algumas das mulheres que aqui vêm.
- Esse amor... que partiu... Quer falar dele? Das razões que o levaram à saída da relação? Acha que há um culpado a responsabilizar?
Não consegui responder-lhe.
Um fio de sangue saíu-me do nariz e pingou, tingiu-lhe a nova alcatifa creme que mandou colocar para combinar com o amarelo-banana das paredes.

quarta-feira

Não sou uma ninfomaníaca. Mas dou comigo no propósito ou no natural a admirar homens e mulheres sem lhes ter a intenção do manjar. Já expliquei qual a minha qualidade de predadora, que no fundo é muito mais de conquistadora e atiçadora, gosto do jogo, é ele que me provoca, é ele que agita o que há de melhor em mim. Ou pelo menos o mais bárbaro, o mais solta, o menos "preparada".
Os meus amigos não fogem a essa regra da minha apreciação.
Não os quero como amantes, nunca os vou querer nessa condição.
Preciso deles perto de mim, falarmos a mesma linguagem, sentir que eles não me temem, abrir a boca do meu saco de lixo e deixá-los espreitar.
Mas só num relance.
Não consigo explicar porquê. Confio neles. Mas não lhes confio o meu saco do lixo, não consigo escancará-lo e expôr as minhas vísceras, as minhas raízes banhadas no sangue de muitos.
Não acho resposta para esta questão. Só sei que quando se aproximam fujo de saco às costas.
Até àquele que amei me escondi no canto do quarto, o saco apertado junto ao peito.
Ele saíu e nunca mais voltou.

terça-feira

- Sabes o que te digo?
(Come com gosto, quando aperta o garfo entre os lábios, numa fracção de segundos fecha os olhos)
- Não, diz lá...
- Parece que tens um instinto natural para pescar gajos que não prestam.
- Custa-me, mas tenho de concordar contigo.
(Mastiga devagar, a boca cerrada mas não apertada num vinco)
- Sabes que tenho razão! Melhor! Ou direi pior! Tu, tu sabes que tens um azar dos diabos com as tuas escolhas. Se bem que és sempre tu que os escolhes... lá diz o ditado quem muito...
- Poupa-me! Abomino esses ditados e provérbios!
- Que te faz escolher um gajo e não outro? Não consigo achar um perfil... são sempre diferentes! Sempre!
- Isso. Serem diferentes. Do último já eu conheço. Quero outro tipo. Não gosto de repetir. É como procurar o engano pela segunda vez.
- Por falar em repetir... Este bacalhau está divinal...
(Busca na travessa, os olhos brilham)
- Podes comer tudo, não quero mais.
- Não?! Não gostaste? Isto está óptimo! Tenho de dar os parabéns ao Chef!
(Passa a lingua nos lábios, estão brilhantes, vermelhos)
- Gostei, mas para mim chega. Vais ficar enjoado...
- Não! Essa é a grande diferença: gosto e por isso não enjoo. Por outro lado, este bacalhau para ti é o mesmo que um gajo que tu até gostas mas acabas por enjoar e enquanto não afastas a travessa de ti não sossegas. Ou seja, enquanto não pões o desgraçado a milhas não descansas! Parece que tens um quase medo de gostar...
- Que queres? Farto-me. Umas vezes por ser perfeito, perfeito demais, outras por se tornar um banal rapaz que conhece rapariga e banalmente têm sexo três, quatro vezes por semana...
- Porque tu o banalizas, queres banalizar.
- Não, não quero. Apenas acontece. Entra tudo numa rotina sem piada nenhuma... telefone, horas marcadas, jantar, cama. Sendo que o prato servido é sempre o mesmo.
- Terías dado um belo de um macho!
- Ofendes-me...
(Na última garfada desliza devagar o talher pela boca. Sensualmente)
- A verdade, Edna, a verdade, Chérie...
- Nunca tinha reparado na tua boca... é um veneno autêntico... de desejo.

segunda-feira

Depois de desligar o telefone tive uma visão como que a antecipar uma realidade que me fez torcer o nariz.
"Beijoquinhas".
Que raio são "beijoquinhas"? Eu lá sou mulher que aprecie "beijoquinhas"?!
Mas deixei passar, tinha a cabeça a mil com o projecto do coreano (são uns chatos, mas pagam como principes) e à noite quando nos encontrássemos tería oportunidade para clarificar as "beijoquinhas".
Foi tudo muito agradável até ao momento dos preliminares. Estávamos em casa dele, os dois apenas, mais ninguém, a situação exigía que ficássemos ali na sala, por cima da mesa se possível, já estavamos os dois bem quentes, não percebi quando meneou a cabeça e me disse baixo: "Aqui na sala, não, aqui não. Vamos para o meu quarto, estamos melhor" e começou a puxar-me.
Confesso que me surpreendeu totalmente!
Fiz força no meu sentido e ficámos naquela situação ridicula de cada um a puxar para o seu lado.
E ele a insistir, "Aqui não, podemos sujar, caír algum pingo..."
Larguei-lhe a mão, ele recuou um pouco ao ficar sem amparo, abotooei a blusa, agarrei no casaco e na carteira e saí porta fora.
Enquanto esperava o elevador lembrei-me das "beijoquinhas". Voltei atrás, encostei o dedo na campainha até ele abrir a porta.
- Não me ligues nem me procures mais. Beijoquinhas também para ti!

domingo

Não traça a perna, não está confortável, apercebo-me que hoje quer entrar por caminhos que só aflorou, que deve conduzir a conversa com cautela ou espanta a caça. Ou seja, eu.
Ainda não percebeu que só terá o que eu lhe quiser dar e não serão joguinhos de psicanálise que lhe permitirão concluír seja o que for.
Diverte-me vê-lo apreensivo. Bem que podía trocar aquelas peúgas sintéticas horríveis e de elástico frouxo que deixam a canela peluda à vista...
- Se lhe fosse dada a capacidade de escolher o sexo tería escolhido nascer mulher?
- Claro.
- Mulher... homem, não?
- Não.
- E como encara as outras mulheres?
- Bem. Depende do tipo de relação que tenha com elas.
- Acha-se superior às outras mulheres?
- Não, sou diferente, muito diferente.
- E perante os homens?
- Que é que tem?
- Acha-se superior?
- Não. A situação é a mesma para com as mulheres e os homens.
- Essa diferença de que fala... incomoda-a se eu a referir como insatisfação?
- De modo algum.
- É essa insatisfação que a faz mencionar o género feminino tão depreciativamente?
- Não vejo como. A maioria das mulheres contenta-se com tão pouco... mas a escolha é delas.
- Essa necessidade de busca em vários parceiros...
- Um de cada vez.
- Sim, mas vários parceiros, uma procura para a satisfazer...
- Os que escolho satisfazem-me, fazem-me vir.
(Tosse, uma tosse pequenina)
- Acha que a sua diferença se marca pela provocação?
- Que tolice! Claro que não!
- Vejo que a perturba eu falar-lhe nesta questão.
- Eu fico perturbada com a cor das suas paredes, do tecto.
- Desculpe?
- Acho que aquilo que lhe pago por hora dá bem para contratar um pintor. E surpreenda-me: caril.
- Desculpe?
- Mais pistas e vai ter que me pagar.

sábado

Tenho um amigo homossexual com quem converso horas a fio, o tempo passa sem nos apercebermos, simplesmente porque tem um raciocinio fluido e chama as coisas pelos nomes.
Acaba por ser uma terapia para ambos.
Embora se diga uma pessoa resolvida já me confessou a sua insatisfação, quer a nível de parceiros sexuais, quer a nível intelectual. Diz-me que se farta, que se satura nos relacionamentos que parecem ser brilhantes de inicio mas rápido se esgotam numa previsibilidade sobre as acções e sobre as falas e nessa ausência do elemento surpresa acaba por se enjoar, um cansaço.
Não podía estar mais de acordo com ele...
Perguntei-lhe se essa sensação não se devería ao facto de ter nascido num sexo errado.
Não, nada disso, não nasceu num sexo errado, gosta de ser homem e sente-se atraído sexualmente por homens, não se trata de um desconforto na pele. Os outros é que se sentem desconfortáveis por ele ser gay.
Pois...
Eu também gosto de ter nascido mulher mas traz-me bastantes dificuldades. É nestas alturas que preciso do meu bigode postiço e das minhas fugas mascaradas para o mundo macho... Claro que ele não sabe deste pormenor nem eu lho vou revelar, é coisa minha, faz parte do meu intimo, e tenho a certeza absoluta que se ele soubesse ía sentir-se desconfortável.

sexta-feira

Não pertenço a nenhuma sociedade, sou de mim.
É evidente que não ando por aí aos pinotes nem a despir-me em público mas não me revejo nos valores instituídos.
Vista em macro sería rotulada como uma bipolar ou esquizofrénica, medicação e qualquer descarrilar sería colocado nos eixos.
À lupa sou uma cabra a nivel negocial, uma puta para quem fala de mim, uma mulher com problemas para a minha familia, uma amiga diferente para os meus amigos, uma fonte de rendimentos para o analista.
Provavelmente serei tudo isto. Mais ainda o que me comentam e diverte. E ainda o meu saco do lixo que desconhecem. E talvez por o meu saco ser exactamente um saco do lixo, sem ordenação, tudo misturado no conteúdo que apodrece eu encontre o único adjectivo que não me aplicaram: Insatisfeita.
Sou-o, tenho consciência, por vezes uma achega, na maioria das vezes uma falta que atrapalha: se por um lado essa insatisfação me alavanca para outros estádios, outras mais amputa-me no gosto de me saber plena a gozar o momento.
Não sou mulher de momentos, de instantes e também não corro atrás de feitos grandiosos assinalados a estandarte. Sou... insatisfeita. É isso, insatisfeita.
Deve ser por isso que me entretenho com o meu saco de lixo.

quinta-feira

- Como te sentes?
- Bem... porque perguntas?
- Por nada... então achas que as sessões estão a ter resultado?
- O que é que essa pergunta significa?
- Nada, nada!
- Se nada, porque perguntas?
- Porque me preocupo contigo! É normal, não achas?
- Não tens que te preocupar. E não respondeste: porque falaste das sessões?
- Porque estás sempre na defensiva?
- Mais uma pergunta...
- Lá estás tu!
- Esta conversa é uma repetição das de sempre. Vou-me embora.
- Vai, volta as costas, não enfrentes a verdade!
- Qual é a verdade Mãe? A tua?
- É por isso que estás sózinha! Ninguém aguenta! Até eu que sou tua Mãe me é dificil compreender-te quanto mais alguém que não é do teu sangue!
- Tudo isto é inútil. Adeus.
Dantes batía com a porta à saída, agora fecho-a devagar, é tudo do mesmo, a conversa repetida, sei-lhe as frases de cor e salteado. Ela não sabe de nada. Desde a infância que não sabe nada de mim, achava-me uma criança dificil, agora uma mulher com problemas como ela diz, "a minha filha é uma mulher com problemas".
Não, não sou. Os problemas surgem e eu resolvo-os. Eficazmente. De raíz. Não sobra ponta por onde voltar a atear. E os que não têm solução estão resolvidos nessa mesma falta. Não me perturbam nem disponho da minha energia a analisá-los.
Mas a grande questão da minha Mãe não são os "meus" problemas, "é" o problema que ela tem; ou melhor não tem: Não tem uma filha casada que lhe tenha dado netos.
E este eu nunca "lhe" vou poder resolver.

quarta-feira

Não me interrogo sobre a minha loucura, se sou louca, se estou quase a chegar lá.
Questiono-me sobre as minhas diferenças, o meu desajuste a este mundo que conheço, a falta de semelhança e comunhão entre os demais.
Na minha profissão chamam-lhe rasgos de genialidade, na vida social excentricidades.
Ele não me rotulava.
Deixava-me ser eu mesma sem ter necessidade de pregar adesivos com nomes para se lembrar que eu não era igual às outras mulheres, que não lhe pedía o mesmo que elas mas exigia uma entrega total e nua na mesma quantidade e qualidade que eu lhe dava.
Terá sido a minha genialidade, a minha excentricidade o que nos matou... não sei. Não gosto de perder tempo com batalhas vencidas, já o disse.
Não gosto de chegar perto da loucura a tentar entender o que não resulta.
Acabou.
Mas sei que a partir daí comecei a pensar se a loucura não viverá dentro de mim e a qualquer momento pode saltar e comer alguém.
O primeiro a ser devorado há-de ser este que se julga perito em analisar-me e está a torrar-me a conta bancária.

terça-feira

Falemos de mim, então.
Desta incompreensão pelo mundo feminino e dos seus achaques.
Eu não devo ser mulher, no sentido literal da palavra. Não me falta feminilidade nem desejo pelo oposto, mas desajusto-me no conceito literário do choro e da recriminação, da vingança comezinha e do apogeu da galinhice e no fundo sinto vergonha por elas quando vejo algumas cenas ridiculamente infelizes e pequenas.
Falemos de mim, pois, e deste falo interior que cada vez mais cresce e até excito e tantas vezes exibo na diferenciação "delas".
Sei o que ele me vai referir. Subtilmente. Achará que me ofendo por me dizer que sofro da ausência de pénis pela ausência da figura paterna, uma amputação que me encaminha para o desprezo pelas mulheres.
Não é isso, mas também não me encaixo. Sinto-me fora e até perco o equilibrio naquele universo de crónica feminina, não sei o que hei-de dizer, desconheço os bordados, não experimentei as dores do parto, não me despeitei por rivais e tão pouco corri atrás do homem que amei.
Toma notas, não pára de escrever... isso não me perturba, quase adivinho a sua letra minúscula parecida com arame farpado, um propósito que só ele conhece não vá a paciente apanhá-lo desprevenido e desvendar-lhe a prescrição para a loucura.
Ele não me acha louca, mas crê que estou a um passo desse abismo.
... Se ele soubesse do meu saco do lixo...

segunda-feira

Não sinto a mínima empatia por estas mulheres que se arrastam numa ligação que sabem desde sempre nunca dará em nada. Até aceito que se deixem ir por uma boa cama, mas santa paciência! como podem acreditar em mentirinhas estafadas de que do outro lado há a menor intenção de largarem uma vida doméstica tão confortável?! Porque não aproveitam simplesmente?
Claro que a inversa também é verdadeira mas intriga-me como é que o sexo feminino embarca muito mais nesta coisa nebulosa que acaba por envolvê-las e deixá-las num estado de fragilidade que só traz descrédito para casos futuros e consequentemente, cegas de todo ao que poderá vir a ser uma relação a sério.
Se não fizessem filmes seríam muito mais felizes.
E depois, aquela coisa do despeito, da perseguição, do ciúme barato, do choro e da gritaria, um desgaste de energia que lhes retira toda a lucidez.
Nunca fui assim, nunca me verão assim. Nunca.
Os meus amigos estão avisados: ao menor sintoma é encostarem-me a uma parede e fuzilarem-me.
Antes a morte que perder a dignidade e o nível.

domingo

- Entre, feche a porta. Sente-se. Sabe porque quero falar consigo?
- Não... bem, talvez por causa deste cliente tão exigente... Parece que não acertamos, não é?!
Dá uma gargalhadinha, compõe a franja degradée, traça a perna, sinto-a confortável.
- Não, não é.
- Não é?
- Não. Clientes exigentes sempre temos tido, são eles que nos pagam e nos despertam o espirito empreendedor. A questão aqui é o seu desempenho, a sua performance.
- Como assim? Não está satisfeita com o meu trabalho?
- Francamente não. Nos últimos tempos o seu rendimento baixou. Que se passa?
- Não concordo consigo!
- Isso não me interessa. Aliás não estamos aqui a falar de juízos de valor. Mas sim de produtividade e como há-de convir isso é uma situação clara: ou se tem ou não.
- Não acho nada!
- Já sei, está a repetir-se. Quer falar sobre o projecto? Que se passa? Não a motiva?
- Não, não, de todo!
- Então?
Encolhe os ombros devagar, volta a compôr o cabelo, tamborila com as unhas pintadas de vermelho escuro sobre os braços da cadeira. Ficamos assim a olhar uma para a outra.
- Ouça, o que os meus empregados fazem uns com os outros é-me indiferente. Mesmo que o façam na hora de serviço. Mas não aceito que um projecto saia prejudicado à conta disso, percebe?
- Não estou a ver...
- Falemos bom português: estou-me nas tintas para as trancadas que você dá com o Daniel. Até o podem fazer aqui na casa-de-banho à hora de almoço...
- Desculpe???
- Deixe-se desse número, sabe bem o quanto me irrita perdermos tempo!
- Mas...
- Mas nada! Se quer saber até acho que esses fornicanços acabam por ser uma mais valia. Você anda mais contente, ele também e o trabalho devería seguir a velocidade de cruzeiro. Mas não, você perdeu-se, deixou de estar focada, o rendimento caíu.
- Eu, eu... sabe o que é?
- Espero que mo diga.
- Estamos com problemas, o Daniel vai falar com a mulher, vão separar-se...
- Ora! E você acredita nisso?
- Juro! É verdade!
- Isso é uma história batida! O Daniel não se vai separar. Para quê? Anda todo contente!
- Não é verdade...
Rompe num pranto silencioso, vejo o corpo a agitar-se pelos soluços que tenta engolir.
Só me faltava esta!
O meu escritório e o meu gabinete transformados em consultório sentimental!
Daqui a nada estou a ler a sina...

sábado

Já me têm aparecido uns engraçadinhos cheios de vento com a mania que me conhecem.
Dependendo do meu humor deixo-os ir, até lhes dou corda, chego a provocá-los e a pô-los em ponto rebuçado e depois Zás! É só empurrá-los com um dedo e estatelam-se no chão.
Outros são mais finos, entram devagar, vão deixando escapar uma e outra consideração, algumas acertadas (não confirmo, claro) outras nem de perto.
O chato, é que estes últimos como não lhes dou sinal, acham-se no direito de partir para a descoberta, a da minha pessoa, e por vezes não descolam. Insistem, aplicam a canção do bandido, convidam-me para jantar (nunca para almoçar, porque será?) e no fundo o objectivo é sempre o mesmo: levarem-me para a cama.
Agora pergunto eu...
E se para esses jantares eu levasse o meu saco de lixo, o abrisse, entornasse um pouco das vísceras e sangue que por lá deposito, falasse sem parar de mim, das minhas sessões...
Será que ainda quereríam curtir?
Retórica. Não é para responder.
Acaba por ser um pau de dois bicos, ou seja, de uma forma ou de outra, afasto-os.
Mas só e apenas porque não me interessam, que os que eu quero não se comportam assim.
Ainda bem ou tería que ficar em definitivo sózinha, pois lésbica não sería, as mulheres não me aquecem minimamente.

sexta-feira

Aquela hora diminuída para 50 minutos deixou-me indisposta, contrariada, muito contrariada. Sinto o fiozinho quente de sangue a correr-me para o lábio. Vou deixar correr à vontade, provo-o na ponta da lingua erguida em direcção ao beiço, ao nariz, é meu, não há-de ser em vão que sangro.
Apetecía-me ir correr, dar às pernas desalmadamente, talvez ter sexo, animal, nada de carinhos ou requintes de sedução, apenas vir-me, cansar-me egoista, servir-me.
Tenho uma raiva dentro de mim que bate por dentro em socos que me deixam nódoas negras, um turbilhão de pancada que quase peço e exigo para sentir qualquer coisa, qualquer coisa de diferente ou que despolete uma novidade.
Acho que não volto lá mais.
E no entanto nunca senti tanta vontade de regressar como hoje, como agora neste instante.
Só para o contrariar. Para lhe fazer ver que não sabe nem nunca saberá nada de mim.
Estúpido!

quinta-feira

Falemos de mim, então.
Desta fuga estratégica à dor do semelhante.
O meu saco de lixo enche-se destes episódios, enfuna-se como uma vela ao vento e quando remexo são só coisas pequeninas que tanto me martirizaram e me sujam até aos cotovelos do tal sangue das memórias.
Fala-me de máscaras, de protecções, de resguardos de boca.
Não lhe respondo, hoje não lhe vou dar saída, não merece, não mudou a cor das paredes, vai ter que se virar do avesso para merecer os euros que lhe engordam a conta bancária.
Prossegue monocórdico, diz-me que quer fazer um jogo (este gajo precisa de tratamento!), mantenho-me muda, ouço-o mas não me apetece dar-lhe sinal que o entendo.
Silêncio.
(Vamos ver quem aguenta mais tempo).
(Deste jogo gosto).
- Dor.
(Eheheh... foi-se abaixo)
- Joelho.
- Partida.
- Combóio.
- Saudade.
- Maria da Saudade Lemos, a minha empregada lá de casa.
- Fuga.
- Impostos.
- Morte.
- Qual é o objectivo disto tudo? Não estou a ver...
- Associações. Por meio de associações chegamos a pontos-chave.
(Sorri para mim).
- Continuo sem perceber.
- À palavra morte não respondeu. O seu silêncio é já uma resposta.
- Ai, sim? E qual é?
- Não quer responder?
- Não.
Não falemos de mim, então.
O saco de lixo é meu, sou eu que carrego o peso, ninguém tem nada que meter o bedelho ou vir aqui despejar seja o que for.

quarta-feira

A última vez que usei o meu vestido preto de cocktail foi num encontro para empresários do ramo.
Um cretino que não sabe beber e que tagarelou incessantemente acabou por entornar a bebida por cima de mim. Em frente ao espelho, nos lavabos, tentei que a mancha se volatizasse. Foi quando me veio à memória que tinha posto aquele mesmo vestido num funeral, uma quase obrigação profissional pois tratava-se de um familiar de um cliente fidelizado, ou não tería lá posto os pés.
Fujo deste número, abomino o cortejo de pesâmes e todo o ritual que envolve a cerimónia.
Mas o que dá cabo de mim são as lágrimas, o ar entrecortado daqueles que já não têm mais força para expôr tanto sofrimento e que são sempre avaliados pelos presentes em vários graus de saudade consoante a intensidade do carpir.
Apetece-me sempre atirar um ou outro para a cova em substituição do defunto...
Sofro com o sofrimento dos outros, talvez até mais do que com o meu que sei como hei-de administrar. Nos outros não.
Por isso evito expôr-me a estas e outras situações, viro costas à dor, não quero comover-me, sentir-me frágil e sensível. Não é fazer papel de dura, é apenas precaver-me.
Mas de quando em vez lá acontece. Como a bebida entornada no meu vestido preto de cocktail.

terça-feira

Parece que herdei da minha mãe esta sina de não ter ninguém próximo e permanente.
Do meu pai que me fez embrião já se sabe, do que me ensinou a abrir o olhos ao mundo a morte levou-o num passeio prematuro.
E eu fico a pensar que de alguma maneira, os homens que se têm atravessado na minha vida foram-se: uns por não haver mais oxigénio de parte a parte, outros por não me aguentarem, outros porque me fartei deles e da sua previsibilidade.
Restou um. Aquele. O que não tem regresso.
E assim sendo não consigo deixar de achar neste velhaco destino que sofro de uma viuvez em vida.
Mas não tenho espinha para chorar causas perdidas e o preto só me dá charme.

segunda-feira

Nunca me perguntei porque razão o meu pai biológico desapareceu, se tería sido por ter medo de perder alguma da sua liberdade e arcar com as responsabilidades da paternidade, se por ter deixado de gostar da minha mãe, se simplesmente por eu ter sido uma decepção. Mesmo sem ter dado tempo ao tempo de eu crescer e se aperceber da minha personalidade.
Aliás só agora me questiono... não acho respostas. Não me incomoda.
Mas intriga-me o facto da minha mãe manter este assunto como uma coisa proibida.
Nunca aflorou sequer se eu tería desejos de saber como ele era, o formato do seu rosto, o timbre da voz.
E por incrível que pareça -eu- que pareço só ter defeitos para a minha mãe, nunca fui comparada num jeito perjorativo com o malfadado fugitivo.
Parece que ela o apagou em definitivo da sua vida como um ficheiro infectado com vírus.
... No fundo, até tenho alguma da herança da minha mãe.
Mas não lho digo, havía de ser lindo!

domingo

Aquela conversa toda sobre a ausência do meu pai não tem nexo algum. Quem desapareceu do mapa foi o que me fez, o que gostou da meia hora em cima da minha mãe e se assustou com a eternidade de ter que ser pai para o resto dos dias.
Mas tive um pai, um homem amoroso que cuidou de mim e que me ensinou a força do querer.
Claro que também cuidou da minha mãe mas linda como ela é qualquer um tomaría conta dela e a amaría.
De mim sería mais dificil, ele nunca virou a cara ao desafio de me ter por perto.
Se há alguém de quem sinta verdadeiras saudades é dele, do seu olhar, da forma como se dobrava para ficar do meu tamanho e das coisas que me dizía rente ao ouvido...
Do outro não sei nem quero saber.
Nunca tive aquele mórbido despertar que tantas vezes se noticia nos media da menina que passou a vida à procura do paizinho, estafermo, que se baldou e agora cheira-lhe aos seus minutinhos de fama.
Por mim pode estar para onde partiu.
No inferno.

sábado

Falemos de mim, então.
De novo nesta sala em que me sinto dentro de um aquário, algas a tentarem enlear-se nos meus tornozelos, ele o peixe.
Sabíam que os peixes têm uma média de memória de 8 segundos?
Deve ser por isso que toma tantas notas, não se consegue recordar do que se passou desde a última vez, tem medo de tropeçar nalgum pormenor embaraçoso da minha vida e projectá-lo sobre a figura do meu pai.
Falemos de mim e do meu pai, então.
Ou do que não há para falar.
Pirou-se. Esta é a palavra certa para designar o que fez. Eu nasci, ele teve medo e pirou-se.
Já sei o que este marmelo idiota me vai dizer: que a minha insatisfação sexual é por causa da figura paternal sempre ausente. Previsivel, freudiano.
Não adianta de nada eu dizer que não tenho insatisfação sexual, aliás até tenho bastante. O que não tenho é estofo para aguentar alguns palermas com quem me tenho cruzado na minha vida.
A seguir vai falar da minha mãe...
- E a sua mãe?
(Eu não disse?)
- A minha mãe ficou desesperada, sei lá, acho que ficou, eu tinha acabado de nascer!
- Qual é a sua relação com a sua mãe?
- Eu sou a filha, ela é a mãe.
- Acha que ela a condena pelo abandono do seu pai?
- Não sei, nunca falei disso com ela. O meu pai é assunto arrumado, não se fala dele.
- A sua mãe condena-a pelos homens que tem tido?
- A minha mãe não sabe nada da minha vida intima. E vai continuar assim.
(Agora vai falar-me do casamento, aposto)
- Esconde-a? Acha que é objecto de vergonha?
(AH! Enganei-me!)
- Não a escondo mas é minha, não é publica.
- E o casamento?
(Eu sabía...)
De repente sinto-me um peixe, uma memória de apenas 8 segundos sobre as perguntas que disparou, tão pouco das minhas respostas há um fio que me conduza de novo à conversa.
Se este homem não mudar a cor das paredes da próxima dou-lhe um tiro.

sexta-feira

Há quem refira que se lembra bem do primeiro amor.
Eu não me lembro. É tudo muito nebuloso, baralhado, misturo épocas e caras, acabo sem ter a certeza de quem foi.
Mas lembro-me da minha primeira vez e com quem foi e como.
Verdade, verdadinha não teve nada de romântico. Foi até bastante doloroso e atabalhoado, nada como eu estava à espera, nada como eu imaginara através dos filmes que vira, em que havía uma sedução constante e um prazer extremo.
Pois é, a grande questão é que a vida não tem nada de sétima arte e alguns momentos foram prova disso.
Acho que cheguei a ter raiva ao rapaz, culpei-o da dor que senti ao romper a minha virgindade, de todos os sonhos a esfumarem-se pela falta de jeito dele.
Agora penso nisso e acho que também foi a primeira vez dele, provavelmente deve ter ficado a pensar o mesmo de mim... ou então foi de eu ter corrido com ele, agressiva, acusatória, um prazer quase maldoso em atirar-lhe à cara o que eu esperava e não tinha acontecido.
Sei que ele não foi o meu primeiro amor.
Sei que ele foi um dos meus amores mas depois da primeira vez passou também a ser um dos meus primeiros ódios.
De casos passados não fico com a menor mão na rédea.
Quer isto dizer que não os sinto como meus. Não faço cenas de ciumeiras nem atiro piadinhas estúpidas que demonstram alguma hipotética dor de cotovelo.
Tive-os, tiveram-me, enquanto foi o tempo de assim ser, depois nada mais. Não são meus, nem volto a falar deles como os meus homens, com alguns mantenho uma ligação que não passa do social, com outros nem isso, perdi-lhes o rasto e mesmo que tivessem tentado uma reaproximação, rápido perderam a vontade pelas minhas respostas curtas e incisivas.
Não há que insistir numa coisa que não resulta.
Isso só danifica o que se passou, é passado, vai para o meu saco de lixo.
Claro que me lembro de todos eles, das suas caracteristicas, mas não fico a remoer numa recordação do tão bom que foi, escuso-me a um mau estar provocado por momentos coloridos que não têm a menor hipótese de serem repetidos.
Nunca repeti a mesma relação.
Nem mesmo o farei em relação a ele.
Não se trata de uma lei da minha parte, apenas uma conclusão: se não deu para quê enganar-me uma segunda vez?

quinta-feira

Sou completamente possessiva relativamente às minhas coisas, não suporto que lhes mexam, que as virem e se deparo com alguém que me questione de onde veio, onde comprei, quanto custou, calo-me. Mas o meu olhar é fulminante e entendem de imediato a mensagem.
A empregada tem instruções precisas quanto às minhas coisas. Sempre as respeitou e por isso está comigo há muito tempo.
Como já disse, não tenho a menor vocação para fada do lar mas não permito que ninguém arrume a minha roupa, nem mesmo a empregada.
Esta forma ciosa de lidar com as coisas, objectos, não pode ser encarada como um egoísmo, eu não o acho. Apenas sinto que todos eles me são importantes e não têm que ter marcas ou cheiros de outros que não os meus.
Não colecciono objectos nem amontoo coisas que não me fazem falta: rodeio-me de conforto, quer para o corpo quer para a vista, nada mais.
Não cobiço nada do alheio nem tenho vontade de ter apenas pelo prazer de ter.
Cá em casa só existem coisas utilizáveis e por essa razão há espaço suficiente sem me esbarrar de lá para cá entre mil e um entraves que não têm objectivo algum.
Não ligo objectos a pessoas ou a momentos passados.
Se assim fosse tería dado rumo a muita coisa para bem longe de mim.
Não querería nada que me ferisse os sentidos.

quarta-feira

Não me demoro em grandes questões sobre coisas que implicam um grande empenho de energia e estão perdidas à partida.
Foi assim com ele, é assim com clientes que querem pagar pouco, é assim com gente que não sabe o que quer.
Volto-me para os meus objectivos e tal como o meu jogging matinal empenho-me em cumprir o tempo de corrida a que me propus, mesmo que isso implique chegar com os bofes de fora. Vou sempre e todos os dias um pedacinho mais além, mais um degrau que se sobe, mais um centímetro acima na minha exigência. Sempre achei que se não me desafiar a mim própria não conseguirei ultrapassar os obstáculos da vida e irremediavelmente ficarei parada à espera do dia de ontem.
Que é como quem diz: sería absolutamente banal.
Ora a vulgaridade assusta-me, cheira mal, atrapalha e até mata.
Eu quero morrer com a certeza que fiz tudo o que devía, ou pelo menos o que me apeteceu, seja mal ou bem.
Eu e o meu saco do lixo.
Ah, pois é! Que quando esticar o pernil nem pensem que ele fica cá para o vasculharem!

terça-feira

Se de vez em quando não me divertissem estas sessões já teríam acabado há muito.
Já corri vários e tudo acaba sempre do mesmo modo: eles analisados. Houve um que se apaixonou por mim e quando lhe contava as minhas cenas intimas ficava sempre numa aflição para esconder a erecção que lhe empinava as calças. (Não está certo! Eu é que pagava e ele é que ficava excitado!).
Há vários tipos, a minha preferência vai para os que suspiram muito enquanto tiram notas. Elas são mais dificeis, mais impenetráveis, controlam-se melhor e muitas vezes depois de um debate saía de lá mesmo cansada pois era uma luta a ver quem primeiro vinha abaixo.
Mas em termos finais o resultado é sempre o mesmo.
Falemos de mim, então.
Do meu saco de lixo cheio, o tal que tinge de sangue até aos cotovelos e que horroriza os melhores profissionais quando lhes descrevo esta imagem. Querem resumir tudo a uma cena de sexo mas afinal não tem nada a ver com isso e quando o descobrem! Pois é, aí é que está! Isto não é um mal de sexo. Então é de quê? De desamor? De infelicidade profunda? de completa realização e sem mais objectivos a alcançar? É o suicidio em vida? A descrença total e profunda de toda a humanidade?
Não.

segunda-feira

Lá está ele... a conversa destes gajos é sempre a mesma. Deve ser um trauma de infância, um shock muito grande que me provocou uma angústia e o meu comportamento desviante mais não é do que um mecanismo de defesa para colmatar um complexo de inferioridade recalcado, blá, blá, blá...
É sempre o mesmo diagnóstico.
- Sabe o que é? São esta fotografias todas que tem em cima da sua mesa, da sua mulher e das suas criancinhas, todos muito felizes.
- Sente a falta? Revê-se nestas fotos?
- Não.
- Não, como?
- Não, como como?
- Se sente que podería fazer parte de uma familia e que estas fotos lhe lembram esse desejo...
- Não.
- Como assim?
- Como assim o quê?
- Que lhe falta a si para...
- Ouça, já percebi a idéia. Mas não vá por aí. As fotografias são lindas. Só não entendo porque precisa delas, não tem a sua familia todos os dias consigo?!
- Sim, mas não é de mim que...
- Se tem a sua mulher na sua cama e os seus filhos à hora de jantar para quê este aparato todo? É para lhe lembrar que tem uma familia e é sua obrigação gostar deles?
- Acho que o nosso tempo já terminou. Hoje avançámos muito. Foi muito produtivo.
Claro que foi!
Lá abri os cordões à bolsa para este palhaço.

domingo

Às vezes sinto-me um íman.
A atraír tudo o que é mau, desviado, tarado. A minha mãe diz que eu não sou boa da cabeça e por isso há sempre a tendência dos semelhantes se agruparem como uma alcateia. Mas claro que também já mo dizía na infância e até ía buscar reminiscências a uma prima afastada que foi meio expulsa da familia por ser considerada uma libertina.
Ela contava-me isso em tom de censura mas para mim era puro divertimento e lembro-me bem do valente estalo que levei quando um dia me saí que quando fosse grande havería de ser como a prima maluca.
Não sou louca. Mas também não sou normal dentro dos parâmetros convencionais do sistema. Venci no mundo empresarial e os testes revelam que tenho um QI acima da média, que diga-se este último, não me serve de muito na minha vida social e afectiva pois parece que tenho um faro especial para descobrir gente que acabo por enjoar ou me trazem problemas.
É o tal íman, há quem lhe chame Karma mas eu não acredito nessas charlatanices e o cheiro do incenso dá-me dores de cabeça.
Alguma coisa deve ser, talvez eu esteja fora do meu tempo. Como a prima maluca.

sábado

Há coisas que deixei de fazer e outras que recomecei e ainda outras que nunca tinha feito depois dele. Depois do tempo dele, quero dizer.
Nunca mais fui ao restaurante Japonês, nem sequer posso ver aqueles peixes crus à minha frente.
Voltei a ficar no escritório até bem tarde ou pelo menos, sempre que havía algum projecto em mãos e foi um tempo de idéias geniais e bastante audazes. A empresa ganhou um estatuto de originalidade que nos veio granjear muitos lucros e uma expansão no mercado que não tínhamos até então.
Experimentei uma ménage à trois, gostei, dá um extâse muito diferente do do casal convencional e não há sombra de dúvida que as mulheres têm um toque muito especial. Mas continuo a preferi-los, nem sequer fiquei com incertezas quanto à minha heterosexualidade ou idéias malucas de que posso ser bi. Valeu pela experiência e pelo abanão que senti, precisava, nada mais a acrescentar e nem sequer voltei a repetir.
Mas o que nunca tinha feito e me deu uma tranquilidade sem igual foi moldar barro. Até me inscrevi num curso, fui a um workshop. O Mestre disse-me que eu tinha nascido para aquilo. Convidou-me para almoçar, aceitei e quando me tentou apertar as mamas dei-lhe uma valente joelhada nas bolas e a minha instrução oleira acabou ali mesmo.

sexta-feira

Quando nos separámos um amigo meu bateu-me à porta, abraçou-me, sentámo-nos no sofá, eu com a cabeça nas suas pernas e ele a fazer-me festas no cabelo.
Não dissémos uma palavra. Não era preciso.
Depois tomámos um bom cognac aquecido em frente à lareira. Era Inverno e soube muito bem, reconfortou-me. O meu amigo foi-se embora quando eu lhe pedi, sem explicações nem desculpas.
Lembro-me como se fosse hoje...
Fiz a coisa mais estúpida que se possa imaginar.
Entrei no quarto e cheirei a almofada dele, vieram-me as lágrimas aos olhos, uma coisa mesmo lamechas e incontrolável.
Nessa noite dormi no quarto das visitas.
Achei-o incómodo. Frio. Horrível.
Não sei como podem os meus amigos gostar tanto de ali ficar como me dizem.
Tinha idéias de mudar a decoração daquele quarto.
Não sei porque passado tanto tempo ainda não o fiz.

quinta-feira

Falemos dele, então.
Não há nada para dizer.
Chegou, esteve e partiu. Simples. Não aconteceu nada de transcendente nem houve discussões. A vida é mesmo assim: tudo o que começa acaba.
Houve um tempo em que me iludi, pensei que não. Aliás nem pensava. Pateta!
Falar de mim? Sobre o quê? Não há nada a dizer, já terminou, siga a vida.
Não, não me recuso a falar sobre isto, simplesmente acho que não há nada de novo nem traz qualquer beneficio estar a desenterrar uma coisa que não tem regresso nem história.
Não tenho traumas, tenho factos.
Desgosto? Hum, talvez. Mas já não sinto nada, aquele calor da raiva já me passou, nem sequer chorei.
Choro muito pouco, já o disse. É um desperdicio.
Se me lembro dele? Às vezes. Tento não lembrar, atrofia-me e não me posso permitir empenhar a minha energia num facto do passado.
Não há necessidade de se falar mais sobre isto.
Adiante.