domingo

Não acredito nessa coisa de genes transportados até ao carácter. Que eles sejam transmitidos para a cor dos olhos, do cabelo, do perfil sim. Mas para a personalidade, de forma alguma.
O meio ambiente em que cada um é criado é parte integrante e decisiva para aquilo que há-de ser no futuro como adulto.
Por isso aquilo que a minha mãe disse não tem cabimento.
O pai que me fez era um canalha sem escrupulos, o pai que me cuidou era um homem grande e com principios.
Aprendi a respeitar a palavra dada e o silêncio da confissão com o que me criou; com o que se foi não aprendi nada.
Mas não posso deixar de ficar surpreendida com esse medo que a minha mãe referiu. Essa fuga perante a imensidão do que não tem palavras para definir exactamente o que é uma pessoa entregar-se a outra de corpo e alma.
Se encarar friamente a questão, sem o adorno dos filmes românticos do eternamente felizes, encontro nessa devoção do amor uma enorme violência praticada pelo próprio e pelo outro que exige esse amor.
Sei do que falo. Já amei. Mesmo. Dolorosamente. Até fisicamente doía. Não conseguía estar sem ele, parecía que precisava dele para me sentir completa. E no entanto, quando juntos, aquela sensação de ter as mãos presas atrás das costas, a sempre pergunta antes de qualquer gesto, amargava-me na boca, consciencializava-me para a perda de liberdade enquanto mulher, enquanto individuo.
Era uma inconstância cá por dentro. E depois, o medo. Um pânico crescente de que ele se fosse, que desaparecesse. Projectava quadros em que o matava se se ligasse a outra mulher, quase o odiava quando pensava nisso.
Não sei viver nem me revejo nesta dualidade de felicidade transbordante e o esconderijo de quem se sente acossado por um receio que ainda não aconteceu ou simplesmente se inventa nas horas de não estar de mãos dadas.
Confiava e desconfiava. Amava e fugía desse amor.
Talvez por isso ele tenha ido embora. Porque me conhecía tão bem, tão bem, que entendeu o que se passava comigo. Eu não fui capaz de aguentar e ele também. Cada um com os seus argumentos.
E do pai que me fez é bem provável que tenha sentido o mesmo...
O que deita por terra toda a minha teoria racionalista. E ainda me faz estranhar-me mais.

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